terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Um amigo especial.

J. B. Pessoa

Capítulo - 16 do livro " Guris e Gibis".

Numa bela manhã de domingo, após as refeições matinais, Luís Augusto acompanhou os pais, para conhecer a Igreja Matriz de Jequié, onde assistiriam uma missa e encontrariam alguns amigos da Congregação Mariana. A missa das oito horas era considerada como a principal do dia, pois nela compareciam as pessoas mais importantes da cidade. Luís gostava muito dos rituais católicos, porém não era dotado de nenhum fervor religioso, o qual absorvia a maioria dos crentes. O garoto achava fascinante a pragmática cerimonial do culto, e adorava ouvir as músicas sacras. Gostou do coral da paróquia de Santo Antonio, que executava os cânticos sagrados, acompanhados de um órgão, magistralmente tocado por uma excelente pianista. Ele permanecia sempre quieto, sentindo o aroma do incenso queimado penetrando em suas narinas, que o deixava com uma sensação de leveza. Quase nunca rezava. Quando tentava orar em um momento reflexivo, não dispunha de uma concentração suficiente para realizá-la; pois a sua curiosidade natural levava-o a observar os comportamentos eventuais dos fieis durante o ato religioso. Os mistérios da religião lhe deixavam bastante confuso e a doutrina que preconizava a obediência total aos valores cristãos, sob a pena de um castigo eterno, deixava-o bastante temeroso. Desde pequeno acompanhava os pais às missas dominicais, fato que acabou tornando-se para ele, um hábito agradável. Ademais, aquela era uma igreja especial. Em uma de suas novenas, ele viu o anjo, que conquistou o seu coração. Agora, naquele momento, o seu olhar percorria todo o recinto à procura da menina que povoava seu pensamento, em constantes deleites.
A igreja estava repleta de fieis, comemorando uma data festiva do calendário católico. O padre Climério proferiu um belo sermão, a respeito de responsabilidade e cidadania, pois aquele era um ano de eleições, no qual seria escolhido o prefeito da cidade e seus vereadores. O garoto acompanhava tudo aquilo com muito interesse. Estava começando a gostar daquela cidade, a qual tinha um charme especial e era o principal centro econômico de uma região. Na parte da liturgia em que as pessoas saiam de seus lugares para receber a comunhão, Luís Augusto aproveitou o momento e, com a permissão da mãe, foi até as escadarias, para respirar um pouco de ar puro. Luís deu uma volta pelos pátios da igreja e notou que, em uma das partes laterais, havia vários garotos, conversando animadamente. Um deles era o vendedor de mingaus, o qual Luís já tinha feito amizade. O garoto aproximou-se dele, saudando-o animadamente:
- Bom dia pessoal! Como vai Orlando?
- Oi, gente fina! Você por aqui? Como vão as coisas?
- Muito calor dentro da igreja! Eu saí para tomar um pouco de ar. - Disse Luis, tentando justificar sua fuga para o pátio.
- Eu estava lá dentro por causa da minha mãe! – explicou Orlando, deixando claro, que não costumava freqüentar igrejas e concluiu:
- Mas não agüentei o treco, saí um pouco, para esticar as canelas.
Um dos garotos presente no local disse sorrindo:
- Eu nunca entro! Só venho à missa para encontrar a turma e ver as meninas.
Orlando apresentou os dois garotos que conversava com ele:
- Ah, esse otário aí, tirado a bonito, é Eduardo Ratinho, o outro, cheio de pancas, é Johnny the Kid.
Luís ficou admirado com o apelido glamoroso do garoto, pois o costume entre a garotada era por alcunhas pejorativas, seguido ao nome de batismo. Apertou a mão do garoto, dizendo:
- Johnny the Kid é um nome muito bonito!
- Meu nome é João Evangelista Bruni Pereira! A turma me deu esse apelido, porque coleciono as revistas de Johnny Mack Brown.
Luís Augusto olhou para o garoto de disse sorrido:
- Puxa a vida!... Rapaz, você é meu primo! Meu nome é Luis Augusto da Cunha Viana! Sou filho de um primo irmão de seu pai, Gustavo Pereira Viana.
Johnny, feliz em ter reencontrado seu primo naquele momento, exclamou com alegria:
- Nossa, que coincidência! Meu pai me disse que vocês estavam morando aqui na cidade. Fomos convidados para almoçar com sua família nesse domingo! Nossos pais irão se encontrar aqui na igreja.
Luís olhou para o primo e disse contente:
- É realmente uma feliz coincidência!
– Admirando o porte elegante do garoto, Johnny evidenciou:
- Puxa rapaz, eu me lembro de você quando era pequeno!
- Eu também! – Recordou Luís, que acrescentou:
– Você chupava o dedo polegar a todo o momento!
- Ih, turma, um chupador de dedos! – Caçoou Orlando, entrando na conversa, querendo iniciar uma sessão de gozações.
Johnny olhou bem para Orlando e disse aborrecido:
- Toma termos, rapaz! Respeito é bom e eu gosto muito!
- Ih, ele se zangou! Calma meu camarada, que o petróleo é nosso! – Disse Orlando, fingindo preocupação, pois detestava Johnny e Eduardo.
Calma, primo! Eu é que lhe peço desculpas, por lembrar-me de um detalhe insignificante da nossa infância! – Observou Luis, mortificado com a situação causada por ele, sem nenhuma intenção.
- Deixa estar, primo, que eu não estou zangado. Mas brincadeiras têm hora e a igreja está cheio de meninas! Nossa turma evita qualquer gozação, próximo a elas!
- Orlando não sabe separar as coisas e sempre diz besteiras! – Disse Eduardo, entrando na conversa para apaziguar os ânimos. Orlando arquitetou uma cômica expressão facial, de quem estava sofrendo uma terrível injustiça. Abriu os braços e balançou a cabeça negativamente, clamando:
- Espera aí, turma! “Vão devagar com o andor, que o santo é de barro!” – E se virando para Johnny, esclareceu diplomaticamente:
- Você é meu amigo e eu sou da sua turma! O que é que seu primo vai pensar de mim?
Johnny apertou a mão de Orlando e respondeu com o seu simpático sorriso:
- Nada demais! Estamos fazendo tempestade num copo d’água!
O garoto voltou-se para Luis e Eduardo, e procurando dar outro rumo à conversa, começou a discorrer sobre os estudos:
- Eu soube que você também vai estudar no Castro Alves! Por que ainda não compareceu à escola? – Perguntou Johnny intrigado com a ausência do primo.
- Os meus documentos de transferência ainda não chegaram! – Respondeu o garoto, que andava chateado com aquela demora e aproveitando a oportunidade para explicar sua ausência, disse:
- Nós chegamos a Jequié em plena Festa de Reis. Logo depois fui para Salvador, onde passei o carnaval, indo depois ao antigo colégio para pegar os papeis. Lá eu soube que os funcionários estavam de férias, e que eles remeteriam para minha casa, pelo correio, logo após o carnaval.
Os garotos ficaram um bom tempo conversando. Trocaram idéias a respeito de coisas e situações, que eram valoradas por uma juventude, ainda na aurora de suas existências. Eduardo falava na sua aspiração em estudar direito e Orlando em ser um grande cantor. Luís acompanhava os garotos em suas reflexões, tentando dar os melhores conselhos, até ouvir atrás de si, uma doce voz chamando o amigo:
- Orlando! Faça o favor!
Luís virou-se e viu a linda menina que ele procurava. Ela estava usando um vestido amarelo que combinava com a cor de seus cabelos. O garoto, tomado pela surpresa, ficou sem dizer nada. Orlando, percebendo o interesse de Luís pela garota, resolveu aproveitar a situação e dar mais uma esnobada nos garotos:
- Com licença pessoal!... Minha namorada está me chamando!
Luis continuava absorto, vendo Orlando se aproximar da menina que, após uma curta conversa, desceu com ela as escadarias da igreja e entraram num magnífico sedan, partindo dali, rapidamente. Johnny e Eduardo permaneceram calados por alguns segundos, até ouvir o balbucio de Luís, com a voz embargada.
- Namorada?!...
- É o que parece! Ela mesma confirmou isso noutro dia, em que eu e Johnny conversávamos com ele! – Respondeu Eduardo, que acrescentou:
- Não consigo entender como um cara feio e pobre, que nem Orlando, possa namorar uma menina linda e rica como essa!
- Quem é ela? – Perguntou Luis, que só a tinha visto no dia de sua chagada à cidade.
- Ela se chama Berenice Muniz Spencer! O pai dela é inglês, engenheiro da Estrada de Ferro e a mãe é filha de um dos maiores exportadores de cacau da Bahia. - Explicou Eduardo, demonstrando um grande interesse pela menina.
Nesse momento a missa termina e as pessoas começam sair da igreja. Eduardo ouve o chamado de sua mãe, e se despede de Johnny e do novo amigo, marcando encontro na porta do Cine Bonfim, logo mais à tarde. Luis permanece calado e pensativo. Johnny percebendo certa melancolia no primo, pergunta:
- Você esta preocupado com alguma coisa?
- A menina!... Estou gostando dela!
Johnny nada disse no momento. Ele também estava apaixonado por Berenice, desde o dia que ela olhou em seus olhos, agradecendo a devolução da peteca. Preferiu não dizer nada ao primo e estava disposto a guardar esse segredo. Olhando para Luís, disse sorrindo:
- Eu acho que Eduardo também está gostando dela! Fiquei sabendo, pelo próprio Orlando, que a maioria da rapaziada da cidade estão “invocados” pela garota!
- Com certeza! Uma menina linda como ela não ficaria despercebida por ninguém! E você, primo! O que sente por ela?
- Simpatia! Acho que sou jovem demais para me preocupar com garotas. Os estudos estão em primeiro lugar.
O garoto omitiu seus sentimentos para não criar uma rivalidade com o primo, cuja amizade renovava naquele momento. Além disso, não tinha nenhuma esperança de que, uma garota do nível de Berenice pudesse se interessar por ele. Pensando assim, acrescentou às suas palavras:
- Primo! Muitas águas ainda vão rolar, pois só tenho doze anos de idade. Ademais, como diz o povo: “O futuro a Deus pertence”.
- Ah, isso é verdade! No meu caso, cheio de esperanças no futuro, respondo com outro dito popular: “O que é do homem, o bicho não come”.
Ambos riram a valer. Não por cinismo; talvez porque, no íntimo, sabiam que os sentimentos nessa idade fossem efêmeros. Os dois eram bastante precoces em muitas coisas, principalmente no desenvolvimento físico, pois Johnny aos doze anos e Luís aos treze, tinham uma altura e postura superiores à suas idades. Porém estavam atrasados em relação ao grau escolar. Johnny porque vivia na roça e Luis por ter sido acometido de uma enfermidade, perdendo um bom tempo escolar. Em um dos seus exames médicos, foi detectada uma mancha no pulmão, obrigando-o a um tratamento sério, e repouso obrigatório. Agora recuperado, queria repor o tempo perdido. Nesse momento aparecem os pais dos garotos que haviam se encontrado dentro da igreja e ficaram surpresos, vendo os dois conversando animadamente. Maria de Fátima ficou encantada com o primo famoso. Ela tinha dois anos quando o Sr. Gustavo, em férias com a família, visitou o primo camponês. Agora, vivendo na mesma cidade, os parentes estavam reatando uma amizade que estava latente, por força das circunstâncias.
Depois de ficarem, algum tempo, conversando em frente da igreja, as duas famílias, se despediram dos outros amigos e seguiram a pé pela Rua Nestor Ribeiro que terminava no Largo do Maringá, onde residia o Sr. Gustavo. Johnny ficou admirado com a casa do primo. Era uma construção moderna, em estilo eclético, que primava pelo bom gosto. Ele só tinha visto coisa semelhante nas revistas. Parecia, para ele, uma residência americana da classe média, que se viam nos filmes. A casa era confortável e decorada com esmero. Tinha todos os apetrechos da vida moderna: geladeira, fogão a gás, enceradeira, ferro elétrico, rádio e uma moderníssima radiola, onde ficaram ouvindo as últimas gravações dos famosos cantores do rádio. Porém, a coisa que mais encantou o menino, foi um liquidificador. Ele adorava as “vitaminas” de frutas, preparadas por esse eletrodoméstico. Muitas vezes, ele separava algum dinheiro, para saborear um copo nas confeitarias da cidade. Estava tudo ali e era do seu primo. A tia Amélia pareceu adivinhar seus pensamentos e, após as refeições, liquidificou uma salada de frutas, que as três crianças tomaram como sobremesa.
Depois do almoço as duas famílias se despediram, marcando um encontro no próximo domingo, na casa do Seu Miguel. Dona Nonna ficou muito feliz em rever Dona Amélia. As duas tinham várias afinidades e, além disso, tinham chegado recentemente à cidade, não tendo feito, ainda, nenhuma amizade.

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