domingo, 1 de dezembro de 2019

Sansão e Quebra Ferro.

J. B, Pessoa

Capítulo - 12 do livro " Guris e Gibis".

Um grande alarido tomou conta dos arredores, onde estava situado o campinho de futebol da garotada. Subitamente, sem que ninguém pudesse prever, o pastor alemão do velho Manequito caiu em cima da meninada, que debandou pelos quatro cantos, assustados com o cachorro. Considerado como uma verdadeira fera, aquele cão, de beleza invulgar, era temido pela turma e ninguém se atrevia a menosprezá-lo. Naquele momento, o lugar estava cheio de crianças, pois o baba disputado com a turma do Barro Preto, atraia muitos garotos daquela periferia. Era uma manhã maravilhosa, com um sol radiante, que despejava naquela gurizada uma incomensurável alegria de viver. De repente, ali estava ele, o belo e atemorizante Sansão, fazendo seus famosos estragos e botando todo mundo pra correr. A eventual ocorrência só não causou maiores danos, porque, naquele instante, apareceu Quebra Ferro, um cachorrão bastante forte, natural de cruzamentos com diversas raças, que fez frente a Sansão. Johnny e Mipai, que assistiam a pelada sob a sombra da mangueira, aproveitaram a oportunidade e subiram na árvore, assistindo a contenda entre os cães com apreensão e curiosidade. Edgar, Nêgo e Géo correram e entraram na casa de Pé de Pata, enquanto o resto da meninada fugiu para o largo do cururu, abrigando-se nas casas da redondeza.
A luta travada entre os dois cães foi feroz. O aparecimento de outro cão em cena pegou o velho Manequito de surpresa, mas não estragou o seu plano de acabar com o futebol da garotada. Porém, percebendo a surra que o seu cachorro estava levando, resolveu intervir e ordenou a seus empregados que finalizassem a briga. Foi necessária muita energia desprendida pelos rapazes que, a muito custo, conseguiram separar as feras. O velho Manequito, ajudado por um caboclo bastante forte, colocou a coleira em Sansão, prendendo-o em seu quintal. O outro cachorro, obedecendo à voz do seu dono, sentou-se na porteira de um curral de cabras, esperando docilmente às suas ordens.
Quebra Ferro pertencia a um jovem pastor de cabras, de dezoito anos, chamado Alípio Oliveira. Antes da brusca aparição de Sansão, ele se preparava para sair com seu rebanho e pastorear nas margens do Rio Jequié. O nome peculiar daquele cachorro se deve a um acontecimento inusitado, beirando a invencionices. Os moradores da rua afirmavam que, certa vez, ele tinha sido preso pelo guarda, que recolhia animais soltos na área urbana e foi acorrentado em um mourão no Curral do Conselho, no qual passou a noite inteira. Após roer e quebrar as correntes que o prendia, o robusto cão conseguiu fugir pela manhã, deixando os funcionários boquiabertos com a façanha. Propagado de forma sensacionalista pelo vigia do curral, a estória acabou se transformou em lenda e aquele simpático cachorro, ganhou o soberbo nome de Quebra Ferro.
Passada a zoeira, a garotada voltou para o campo e todo mundo foi agradecer ao herói salvador, que fazia festas a todos. Havia três anos que Alípio tinha ganhado aquele cão de uma ninhada da cadela de Dona Elza, uma viúva do Bairro Mandacaru, famosa como licoreira e doceira. Ele criou o animal solto em contacto com todos os vizinhos e, desde pequeno, o seu cão foi se acostumando aos carinhos da criançada. A meninada ficou um bom tempo em volta de Quebra Ferro, tecendo elogios à sua
valentia ao mesmo tempo em que maldizia de Sansão como verdadeiro vilão da história. Alípio, orgulhoso de seu cachorro, saiu com ele para o campo, indo pastorear suas cabras, tendo certeza que aquele episódio seria comentado por muito tempo.
Eram quase dez horas da manhã, quando chegaram ao campinho de futebol Tõe Porcino, acompanhado do seu primo Mamãe Eu Quero. Logo que tomou conhecimento do sucedido, Porcino lamentou muito o fato de o pastor alemão ter saído ferido da luta e pelos descasos do velho Manequito com direitos da meninada jogar bola em seus quintais. Edgar, fulo de raiva com tudo aquilo, explicou para os outros garotos ali reunidos, qual o verdadeiro propósito do velho arrogante.
- Aquele velho sacana vive desdobrando álcool e vendendo para os otários como cachaça verdadeira. Ele, geralmente, trabalha à noite; à surdina! Mas, como agora é carnaval, e a procura do seu produto é maior, o bandido quer expulsar a gente dos nossos quintais para a gente não testemunhar as suas treitas.
- É devera! – Assegurou Nêgo.
- E para isso usa o pobre do cachorro na gente! – Concluiu Porcino.
- Pobre do cachorro uma porra! Você não viu o estrago que ele fez no Terreiro do Pai João! – protestou um negrinho de quatorze anos do Barro Preto, cuja mãe foi hospitalizada na noite do último Natal, em consequência de uma mordida desferida pelo detestado cão.
Nesse momento Géo resolveu dar razão para as queixas do garoto dizendo:
- O rapaz ta certo! Na hora do “baba”, quando Sansão atacou, se não fosse Quebra Ferro, a gente tava fudido!
Tõe Porcino concordou com o camarada, fazendo ressalvas:
- Você está certo! Está no seu direito de ficar aborrecido! Eu mesmo ficaria puto da vida se alguma coisa acontecesse com a minha mãe. Contudo um cachorro só ataca as pessoas se for treinado para isso.
Johnny, que acompanhava com interesse a questão, concordou com Porcino, dizendo:
- Pois é! Existe uma afirmação, calcada de mau humor que diz: “Eu amo os cães e odeio seus donos”
- É devera! – Completou Nêgo, acrescentando:
- Quebra Ferro é o maior e mais forte cachorro que eu já vi! Acabou de dar uma surra em Sansão e saiu mansinho da briga, brincando com todo mundo. Ele é assim porque Alípio o criou dessa maneira.
Mamãe Eu Quero, que até aquele momento tinha ficado calado, resmungou:
- Bom ou mau, eu quero distância dos dois!
- Tu ta falando de que sujeito? – Perguntou Mipai com desdém:
- De Sansão e do “coisa ruim” que atende pelo nome de Manequito!
Nêgo completou a afirmação do amigo, dizendo:
-É um verdadeiro diabo aquele velho. Vocês não se lembram do que aconteceu no domingo passado? Tony de Leda continua mancando até agora! Precisou tomar dois tipos de vacinas; uma contra raiva e outra antitetânica!
- Deixa estar que o dele está assando, mas terá de comer frio! – Disse Porcino alisando o queixo, pensativo.
O negrinho detestava o velho. Não pelas suas falcatruas, pois sabia que essa atividade ilegal era comum na cidade. Havia Seu Joaquim da Lagoa Dourada, que também falsificava aguardentes e vinhos, mas era um bom homem. Ele mesmo
ganhava uma boa comissão entregando o produto do vizinho para diversos botequins da cidade. Acreditava que a maioria dos biblistas como Manequito eram hipócritas, mas isso não era um problema para ele. O mundo estava cheio de pulhas, principalmente entre os políticos e aquele velhaco era apenas um deles. Porém, o que Porcino não perdoava, era o fato de Manequito, ter transformado um belíssimo cachorro com aquele pastor alemão, em um vilão entre a meninada do lugar. Sansão era muito parecido com outro pastor alemão, famoso nas telas, com o nome de Rin Tin Tin, do qual o garoto era um fã incondicional. Depois de meditar um pouco sobre o assunto disse para toda a meninada, ali presente:
- Vamos esperar o carnaval passar!
- Por falar em carnaval, hoje é o último dia. Qual será o nosso programa? – Perguntou Johnny, mudando de assunto.
Porcino, que naquele momento remoia seus pensamentos, à procura de uma maneira especial de punir o vilão falsificador de bebidas, sorriu animado, dizendo:
-É justamente por isso que eu estou aqui! Pois, com essa “zueira” toda, eu me esqueci de falar! O Seu Zé Sampaio convidou a gente pra sair no caminhão da prefeitura vestindo a camisa do Flamengo.
- Quanto ele vai pagar por isso? – Perguntou Edgar com um sorriso sarcástico.
- Nem me pagando eu visto a camisa do Flamengo! – Bradou Nêgo com desprezo, que torcia pelo Estudante Futebol Clube.
- E daí? As camisas vão ficar com a gente e com elas poderemos ter o primeiro time encamisado da rua. – Retrucou Porcino, que era torcedor do Flamengo.
- É devera e com isso a gente pode botar a maior banca com a turma da Caixa d Água! – Afirmou Géo que também torcia pelo Estudante.
Edgar, cujo time de coração era o Vasco da Gama, protestou:
- Vocês estão dizendo isso porque são flamenguistas!
Depois de debaterem sobre o assunto, por um curto tempo, a turma resolveu que todos iriam sair com a camisa do Flamengo. A exceção ficou por conta de Edgar e Nêgo, que não queriam de maneira nenhuma trair seus times e de Johnny, que queria ficar solto pela rua, para melhor aproveitar a folia. O restante dos garotos torcia pelo Flamengo e de bom grado acataram a proposta de Porcino.
A cidade de Jequié tinha um bom estádio de futebol, com uma modesta arquibancada, denominado Estádio Aníbal Brito. Tinha um campeonato municipal muito disputado e bastante animado, no qual, a maioria das agremiações tinha o nome de times cariocas. Todos os domingos, os amantes desse grande esporte bretão compareciam ao estádio com suas torcidas organizadas. Era uma verdadeira festa, com o estádio apinhado de torcedores, para verem seus ídolos em ação e seus times vencedores. Quando um garoto dizia que era torcedor do Flamengo, ele estava se referindo ao Flamengo de Jequié e não ao time carioca, embora torcer por ambos os clubes, era comum na cidade.
A turma ficou, por um bom tempo, conversando sobre futebol e carnaval, quando ouviram o chamado de suas mães e foram para suas casas. Era meio dia, a hora sagrada do almoço em família.

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