segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

O acerto de contas.

J. B. Pessoa

Capítulo - 14 do livro " Guris e Gibis".
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Tõe Porcino acordou bem cedo naquela manhã. Estava ansioso para contar aos seus amigos à visita que Pai João fez a Seu Manequito na noite anterior. Saiu apressado, logo depois do café da manhã, e foi ao encontro marcado com a turma, embaixo da mangueira. Estava com seu carrinho de mão, pois era sábado, o principal dia de feira livre da cidade. Dia em que ele, Edgar e Mamãe Eu Quero ganhavam um bom dinheiro, transportando as compras dos fregueses às suas residências. A turma já o esperava com certa ansiedade, pois só podia contar com a ajuda do pai de santo, para por um freio nas impertinências do encrenqueiro, o qual continuava impedindo a meninada de jogar bola perto do seu quintal. Os garotos já tinham apelado para os seus pais, mas a lábia do velho convenceu a toda vizinhança, principalmente os evangélicos, de que aquele tipo de recreação era ruim para a saúde e que era perniciosa na educação dos meninos. A maioria dos pais tinha pouca instrução e Emanuel Quirino de Souza, conhecido como Manequito, assíduo leitor da bíblia, via a mão do diabo em tudo àquilo que não era do seu interesse. Ele era um sujeito rude, de cor parda, com mais de cinqüenta anos de idade. Tinha a estatura mediana, era calvo e bastante magro. Os poucos cabelos crespos que lhes restavam, estavam bastante esbranquiçados. Vestia, sempre, o mesmo terno de brim caqui, camisa branca, sem gravata e usava um surrado chapéu de abas curtas. O seu prestígio, como religioso, naquela periferia era tão nocivo, que foi preciso à intervenção de Dona Nonna, católica fervorosa, esclarecendo aos seus vizinhos, do benefício da prática de esportes na saúde dos jovens e do perigo que representa um falso moralista.
O dia estava esplendoroso naquele final de verão. A luminosidade típica da cidade refletia naquela manhã, uma intensidade fora do comum, dando a impressão de uma temperatura mais elevada. O clima estava ameno, em conseqüência da chuva que caiu naquela madrugada, deixando o campo dos garotos coberto com poças d’água e muita lama. Debaixo da mangueira, a animada meninada conversava sobre o torneio de futebol, que seria realizado, pela primeira vez, no campo construído por eles. Enquanto aguardavam Porcino com as noticias, os garotos confabulavam com as turmas do Barro Preto e Cururu, que teciam mirabolantes estratégias contra o inimigo comum.
- Que tal a gente dar uma bola de carne envenenada, para o cachorro comer? – Disse um dos meninos da turma do Barro Preto, achando que a sua opinião, seria a solução ideal. Depois de verificar que a turma que não concordava com uma idéia tão radical, perguntou:
- O que o velho sacana quer?!
- Sacanear a gente! – Respondeu um garoto do Cururu.
Outro garoto Barro Preto, que achava um desaforo muito grande, alguém querer mandar na propriedade alheia, disse:
- Se o campo não pertence a ele e mesmo assim o sacana atiça o seu cachorro na gente, o negocio é matar a fera!
- Nada disso! O cachorro não tem culpa de nada! – Respondeu Edgar, que já havia pensado nessa possibilidade, logo descartada, em virtude da afeição de Toe Porcino por Sansão.
Nêgo, que odiava o biblista mais do que qualquer outro, disse:
- A gente devia dar uma lição naquele bandido!
- Não se preocupe com isso, que a solução está sendo tomada. - Disse Edgar, na certeza de que o pai de santo daria conta do recado. Nesse momento, a turma avista Tõe Porcino, acompanhado de Mamãe Eu Quero e seus carrinhos de mão. Porcino vinha mostrando seus alvos dentes num largo sorriso, gritando de longe:
- Tudo solucionado, meus camaradas!
A garotada sentou nas pedras debaixo da mangueira, e ouviu com atenção o relato do gibi, o qual, numa alegria contagiante, contou nos mínimos detalhes, tudo o que aconteceu na noite anterior.
O pai de santo pediu a Porcino, que o acompanhasse até a residência de Manequito, pois queria mostrar para o pulha, que ele era protetor do negrinho e de seus amigos. Ele era tratado, por todos que o conhecia de Pai João. Era um grande curandeiro. O povo dizia que ele havia curado muito sifilítico, bem antes do aparecimento da penicilina. Era um preto velho muito simpático, bastante forte, de idade indefinida, o qual tinha a rigidez natural de quem havia trabalhado, com afinco, a vida inteira. Diziam que o velho tinha nascido na época da escravidão, mas fora beneficiado pela Lei do Ventre Livre, antes que a abolição fosse decretada, alforriado seus pais. Ele tinha um jeito dócil, olhar terno e um sorriso amável, mostrando os alvos dentes, todos em perfeito estado. Sorriso esse, muitas vezes desconcertante, pelo cinismo com que o velho respondia às perguntas indiscretas.
Era quase oito horas da noite quando Pai João e Porcino bateu na porta do intransigente cidadão. A rua estava deserta naquela noite escura e ainda dava para ouvir os últimos acordes da música tema do programa, “A Hora do Brasil”, vindos do alto falante no começo da rua. Manequito abriu a porta e, visivelmente aborrecido com aquela inconveniente visita, não os convidou a entrar. Limitou-se a atendê-los na calçada com a porta entreaberta e, arrogantemente, perguntou o motivo daquela intromissão ao seu descanso. Pai João pediu desculpas pela sua falta de fineza, explicando que a visita era curta, mas que se tratava de algo grave que aconteceu várias vezes e que o amigo, com certeza, não tinha conhecimento do fato. Pai João relatou os estragos, que o pastor alemão havia proporcionado em seu terreiro, na noite de natal e das queixas que a vizinhança tinha do referido animal. Manequito fez pouco caso dos seus visitantes e, cinicamente, expôs as qualidades do seu cão, revelando-o como verdadeiro instrumento da obra divina, cuja virtude era à aversão total por candomblezeiros. Nesse momento o cachorro aparece rosnando, deixando Porcino amedrontado. Manequito sorriu sarcasticamente, avisando que não era responsável pelo que poderia acontecer e intimaram as suas visitas a saírem imediatamente da sua calçada, senão poderiam sofrer as conseqüências de suas impertinências. O pai de santo se abaixou e, estalando os dedos, chamou o animal a si. O cachorro veio ao seu encontro, fazendo festas para o preto velho, que afagava a sua cabeça, docilmente. Manequito não acreditava no que via e tentou afastar o seu cão dali, mandando que ele entrasse na casa. O pastor alemão, além de não obedecer ao seu dono, rendeu-se em festas a Tõe Porcino que, aquela altura, já tinha perdido o seu receio pelo belo cão. Manequito ficou
indignado com aquela ousadia e, citando torpemente, vários versículos bíblicos, acusou Pai João de bruxarias. O pai de santo sorria, e caçoava do farsante, classificando-o de fariseu, dizendo que o inferno estava cheio de gente como ele. O biblista, bufando de raiva, tentou prender o seu cachorro, o qual não o obedecia e foi presenteado por ele, com uma bela mordida. Manequito urrou de dor e ódio, principalmente quando viu o irritante pai de santo e o intragável negrinho irem embora, no maior deboche, sendo acompanhado pelo seu pastor alemão.
Os garotos ouviram boquiabertos os relatos de Porcino, felizes por saberem que, a fera que os afligia estava domada. Géo que, por formação religiosa, não dava créditos às façanhas do Pai João, disse duvidando:
- Você está me dizendo que Sansão ficou manso?!... Desculpe meu camarada, mas só vendo prá crer!
- Manso! Mansinho da silva! – Disse o negrinho em tom de mofa.
Nesse momento aparece Johnny, que tinha saído cedo de casa, retornando naquele momento. Tomando conhecimento das boas novas, pergunta curioso:
- Onde está Sansão, agora?
No Terreiro do Pai João brincando com a criançada! Você precisa ver para acreditar; nem parece o mesmo cachorro. Agora ele vai ser o cão de guarda do lugar!
Um dos garotos do Cururu, que temia Manequito mais do que o cachorro, alertou:
- O Seu Manequito não vai deixar barato!
- Problema dele! Se ele aparecer com outras artimanhas, vai se arrepender de ter nascido! Pai João deixou claro para o velho, que bulindo com a nossa turma, era o mesmo que bulir com ele! – Disse Porcino com raiva. Depois disso se despediu da turma e foi com Edgar e Mamãe Eu Quero trabalhar na feira jequieense.
A meninada estava satisfeita com o rumo dos acontecimentos. Dentre em breve, naquele campinho de futebol iria acontecer o primeiro torneio de futebol juvenil daquela periferia.

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