sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Segunda feira de carnaval.

J. B. Pessoa

Capítulo - 11 do livro " Guris e Gibis".

Johnny amanheceu bem disposto naquela segunda feira. Depois do café da manhã, saiu apressado para encontrar a sua turma, querendo saber das novidades no baile dos Cadetes. O garoto encontrou os meninos reunidos debaixo da mangueira, na área do quintal de Pé de Pata, numa animação natural, inerente aos garotos de suas idades. Tõe Porcino, quando avistou Johnny, foi o primeiro a fazer festas pela presença do garoto, que retribuiu aquela alegria com um afetuoso abraço. Naquele momento, os meninos estavam caçoando, um do outro, relembrando as mancadas ocorridas entre eles, na batalha de confetes da tarde anterior. Costumavam fazer sempre isso, ou seja: cada um tentando desmerecer o mérito do outro que, por sua vez, contra atacava numa espécie de competição, em que o vencedor seria aquele que conseguisse expor o outro ao ridículo, fazendo com que, as zombarias terminassem em homéricas gargalhadas. Edgar Pé Grande era o único da turma que não participava dessa sessão de zombarias. Achava que era criancice demais de seus camaradas e no momento relia seu Gibi Mensal, deleitando-se com as aventuras em quadrinhos de seus heróis prediletos. Não caçoava de ninguém e se aborrecia se alguém tentasse zombar de sua pessoa. Ficava enfezado e exigia respeito dos camaradas; sendo que, às vezes, sua irritação chegava à violência. Apesar disso, era alegre e bem humorado. A turma sabia disso e o poupava de suas gozações, limitando suas brincadeiras aos mais reticentes. Mipai era o grande gozador, com suas zombarias redundantes; por isso mesmo, a turma se unia toda a vez que ele abria a boca para caçoar de alguém. Com a chegada de Johnny, a sua atenção foi desviada para o garoto que, pelo fato de ter sido criado na roça, era um prato cheio para suas bem humoradas chacotas. Ignorando, propositalmente, a inteligência e educação do garoto, ele começou a transformá-lo no centro de uma sessão de gozações, com suas piadas irreverentes. Fazendo pose de orador, numa expressão caricatural dos políticos demagogos, disse aparentando solenidade:
- Por falar em caipiras, eis que adentra ao nosso recinto o Dr. Johnny Capiau, provindo das insólitas regiões da mata baiana.
- Errado! Da maravilhosa caatinga baiana! Sou catingueiro, com muito orgulho!
- Pois é! Que seja! Chegou aqui falando numa língua estranha que ninguém entendia! Parecia um índio!
- Era uma mistura do Português falado em Portugal com o idioma italiano. Minha mãe é filha de uma portuguesa com um italiano. Na verdade meus avôs maternos eram caipiras europeus, principalmente a minha avó, que é de uma região de Portugal, onde o Judas perdeu as botas. Meu pai é um caipira, como todo mundo de sua família também é. Imagine vocês, que, quando cheguei a Jequié, eu só andava no meio da rua, pois achava que as calçadas eram somente para o povo da cidade!
A turma caía na gargalhada, enquanto Johnny relatava uma sorte de mancadas, imputado a si mesmo, o que eram adaptações de velhas piadas, atribuídas ao imigrante português. A turma em solidariedade com a aparente
franqueza do menino começou a relatar suas desventuras ao chegar à cidade. Eram todos originados de pequenos burgos baianos, localizados em regiões áridas da catinga, cujas famílias migraram para Jequié em épocas de seca. Mipai não conseguindo ridicularizar o garoto, falou em tom de mofa:
- Todos vocês são mateiros! - E batendo com a mão direita no peito nu, disse aparentando orgulho:
- O único que nasceu numa grande cidade fui eu! Nasci na progressista cidade de Vitória da Conquista.
Edgar abandonou, por um instante, a sua leitura e retificou o camarada com ironia:
- Ô esse menino!... Se não me falha a memória, sua mãe disse à minha, que você nasceu em São João das Matas.
- Mateiro! – Gritou a turma às gargalhadas.
Havia certa discriminação das pessoas que moravam na cidade, aos que habitavam em lugarejos da zona da mata e da caatinga, pois a vida urbana era motivo de orgulho. O grau de civilização de uma cidade era medido pelo seu tamanho e pelas quantidades de casas comerciais, cinemas e paróquias que possuíam. A cidade de Jequié havia surgido de uma povoação, nascida na Fazenda Borda do Rio Jequié, que, por sua vez, tinha sido desmembrada do grande latifúndio, denominado Borda da Mata, em virtude de sua sede ter sido construída entre a mata e a catinga. A Mata Atlântica foi uma área em que prevaleceram as grandes fazendas com, suas plantações de cana de açúcar, café e o cacau, as quais utilizavam o trabalho escravo. Na caatinga a atividade principal foi a criação de gado, na qual, o trabalho livre era realizados pelos vaqueiros. Esses, em contato com os índios cotoxós e mongoiós, geraram os caboclos sertanejos da região, prevalecendo à pequena propriedade com suas culturas de subsistências. As duas zonas fisiológicas haviam gerado dois tipos de mestiços. Na mata predominava o mulato e na caatinga o caboclo; porém, o termo mateiro ou catingueiro não se referia a raças e sim aos habitantes das referidas regiões. Ao contrário do que acontecia na zona da mata, as piadas na caatinga satirizavam o mateiro como preguiçoso e o catingueiro como um virtuoso trabalhador; motivo pelo qual, a meninada catingueira detestava ser tratada de mateiro.
- É isso aí, mateiro sim! – Afirmou Tõe Porcino e virando para Mipai disse com desdém:
- Os únicos da turma que nasceram aqui na cidade, foram Géo e Edgar. O resto nasceu na roça, sim! Na caatinga! Eu nasci perto do povoado de Porto Alegre, rio acima. Johnny nasceu na fazenda do pai, em Itiruçú, Pé de Pata é de Maracás, Nêgo é de Cachoeira de Mané Roque e você, seu otário, nasceu num lugar onde o Judas perdeu as botas, perto de São João das Matas.
Mipai sorriu com cinismo e, tentando contestar a afirmação de Porcino, prognosticou:
- Eu fui predestinado para nascer no Rio de Janeiro. Acontece que vim do céu, trazido por uma cegonha sacana, beberrona e preguiçosa. Quando sentiu o cheiro dos alambiques de São João das Matas, me jogou na primeira casa que encontrou e foi à farra.
- Essa piada é velha!... Sendo assim eu deveria ter nascido em Hollywood, à terra do cinema! – Disse Géo
- Eu também! – Afirmou Edgar.
- E eu! – Completou Pé de Pata.
Mamãe Eu Quero, que permanecia calado diante das discussões dos seus camaradas, disse de supetão:
- Eu nasci numa terra maravilhosa chamada Suíça!
A turma olhou para ele, que no momento exibia um largo sorriso e emanava uma falsa superioridade, de quem estava convicto da afirmação. Mipai agarrou o pequeno e o preparava para lhe dar uns cascudos, quando Porcino interveio.
- Eu aposto dez mil reis com você, como ele está dizendo a verdade!
- Cadê o dinheiro? Vamos casar a aposta agora! – Disse Mipai.
Porcino tirou de sua carteira uma nota de dez cruzeiros novinha em folha, a qual exibia a efígie de Getúlio Vargas e jogou a cédula ao chão, dizendo:
- Case!
Mipai olhou para Porcino desconfiado. Sabia que o pretinho era esperto demais e não costumava perder apostas. Encarou o garoto e o ameaçou:
- Olha aqui, seu sacana. Não quero saber de nenhuma treita!
- Pague pra ver! – Retrucou Porcino.
Nesse momento, prevendo que aquela situação poderia terminar numa briga, Edgar largou a sua revista e disse em bom tom:
- Eu afirmo que Mamãe Eu Quero nasceu na Suíça! Se você apostar, vai perder o seu dinheiro, meu camarada!
A turma atônita, não entendia nada. Johnny sabia que deveria haver ali uma charada, embora ele não cogitasse qual era.
Mamãe Eu Quero, para evitar qualquer confusão, disse mangando de Mipai:
- Eu nasci na Fazenda Suíça, há um quilometro depois do Posto de Manoel Antônio, seu besta.
A turma riu muito e começou a caçoar de Mipai. Uma nova onda de gozações surgiu dali, acompanhadas de gargalhadas e zombarias. Mipai, nervoso, tentava a todo custo, reverter à situação. Porém percebeu que seus amigos estavam unidos naquele momento e, como estavam deliberadamente dispostos a ridicularizá-lo, achou melhor mudar o rumo da conversa para não se aborrecer ainda mais. Aproveitando que o assunto girava em torno do belo país europeu, disse para os garotos:
- Turma: por falar em Suíça, ontem de tardezinha, depois que terminou a matinê do clube, eu fui até o Posto do Maringá pra entregar uma cesta de pasteis, que minha avó fornece toda a semana ao bar. Quando saí, vi um cadilac conversível, que estava pondo gasolina naquele momento. Dentro dele estava um bando de garotas bonitas. A mais nova, uma lourinha, era parecida e tão bonita quando aquela artista do filme Matar ou Morrer. Elas estavam fantasiadas de camponesas suíças e parecia que participavam do corso. A novinha é a menina mais linda que eu já vi!
- Qual a cor do cadilac? – Perguntou Porcino curioso.
- Rapaz, eu fiquei tão invocado com as garotas, que nem prestei atenção. Acho que era azul claro.
- Já sei quem é a menina! É Berenice! Minha mãe já trabalhou na casa dela! - Disse Porcino e virando para Johnny, perguntou:
Você viu o cadilac ontem, no corso?
- Não. Eu fiquei em cima do caminhão com as meninas, participando do corso. Só depois é que percebi que assistir ao corso é melhor do que participar dele!
- É devera, a gente vê todos os Blocos e carros alegóricos e as garotas que participam. – Concluiu Mipai.
Johnny aproveitou que o assunto mudou para o carnaval, perguntou:
- Então turma, qual o programa de hoje?
Edgar elevou os braços para cima, se contorcendo numa espreguiçada, bocejando ao mesmo tempo, falando com total desinteresse.
A segunda feira de carnaval é um pouco sem graça. Todo o comércio está aberto e todo mundo está trabalhando. Só a noite é que os clubes funcionam.
- Às três horas tem batalha no Jequié Tênis Clube! – Disse Nêgo.
- Só para os brancos e ricos! – Observou Porcino.
Pé de Pata, que conhecia bem o clube e possuía uma carteira de sócio juvenil, dada pela sua madrinha de batismo, replicou:
- Brancos uma ova!... Ricos, sim!... Tem uma turma de sacanas que mora no centro, que só faz amizades com quem tem dinheiro. Eu costumava brincar no parque do Tênis, que é muito legal. No início eles me tratavam bem; mas quando descobriram que meu pai é guarda municipal e que eu morava em ponta de rua, começaram a me desprezar. Os piores eram os dois gêmeos Wilsão e Niltão Torres, que são mulatos.
- E devera! – Concordou Géo, que completou:
Eu soube por Neco de Crioula, que é garçom do clube que, quando o filho do Dr. Jackson Martins dos Santos, que é negro e um dos homens mais ricos do sul da Bahia, participou de uma festa de debutantes do Tênis, um bando de remediados, metidos a besta, que são sócios do clube, ficaram babando o ovo do cara a noite inteira!
- É devera. O pai de Niltão e Wilsão, que é candidato a vereador, era um deles. – Disse Edgar, que detestava os filhos do político.
- Quer dizer que hoje não haverá nada na rua? – Perguntou Johnny, bastante decepcionado.
- Os filhinhos de papai, que estão de férias escolares, saem com seus blocos e ficam nos bares “comendo água”. A partir das quatro horas alguns comerciantes liberam seus empregados e a folia pega fogo na cidade. – Adiantou Pé de Pata, que sugeriu ao garoto:
- Se você quiser a gente pode ir junto e eu dou um jeito de você entrar no clube para dar uma olhada e até brincar. As meninas mais bonitas da cidade vão estar lá.
Mipai aproveitou o convite de Pé de Pata a Johnny para iniciar mais uma gozação.
- Dom Zé Ninguém convidando o Dr. João Capiau para o banquete dos burgueses!
- Deixa de ser besta sujeito, que sou sócio do clube. Minha madrinha me garante. Além disso, Seu Nelson Andrade, que é o gerente administrativo do clube é amigo de meu pai. Quem pode, pode. Quem não pode se sacode!
Edgar chamou Mipai à atenção:
- Puxa meu chapa! Você amanheceu o dia de hoje para esculhambar com todo mundo! Como diz a piada: “Você é meu amigo ou amigo da onça?”
- Brincadeirinha, turma!... É que o dia hoje tá chato pra burro!
- Então, que tal a gente ir tomar banho no rio depois do almoço? – Propôs Géo para a turma, pois queria guardar energia e dinheiro para o último dia de carnaval.
- É uma boa idéia! – Respondeu Pé de Pata e virando-se para Johnny, perguntou:
- E aí?... Você quer ir ao clube ou ao rio com os meninos?
- Eu acho que vou aproveitar a tarde e ir com meu pai visitar meu tio avô!
A turma passou o resto da manhã conversando e o assunto mudou para pescarias. O sarcástico Mipai continuou com suas zombarias, sendo Géo, a vítima da vez, com a sua má sorte para com os peixes. Logo depois Johnny despediu-se dos garotos e foi para sua casa, pois a hora do almoço se aproximava. Ficou algum tempo pensativo, relembrando a moreninha de Jaguaquara e a saudade começou aflorar no seu peito, deixando-o melancólico. Tomou um banho frio na grossa torneira do banheiro e, após o almoço, dormiu um pouco, sendo acordado pela sua mãe, cerca de uma hora da tarde.
O garoto despertou bastante disposto a dar uma olhada na batalha de confetes do Jequié Tênis Clube. Se for possível, ele poderia até brincar um pouco, já que Pé de Pata o orientou a procurar o porteiro em seu nome. Vestiu uma camisa de meia, de cor amarela, para realçar sua desbotada calça de brim, da etiqueta coringa, a qual era o primeiro jeans a entrar no mercado brasileiro. Calçou as suas velhas basqueteiras azul e partiu em direção do centro da cidade. Lá chegando, verificou que o Cine Teatro Jequié ainda exibia o filme nacional que queria assistir. Não teve dúvidas. Comprou o ingresso e entrou no cinema, que no momento estava um tanto vazio. Sentou-se sozinho, afastado dos outros espectadores e esperou pacientemente o inicio da projeção. Não demorou muito e um grupo de meninas entrou no cinema, ocupando as poltronas a sua frente. Logo após outro grupo de garotas sentou na fileira atrás da sua. Não tardou muito para aparecer os garotos, e nas adjacências de onde Johnny estava sentado, ficou povoado da alegre juventude jequieense. O filme “Aviso aos Navegantes”, que já havia sido exibido na cidade, estava fazendo o mesmo sucesso da na época do seu lançamento. A moçada que assistia a sua projeção cantava suas músicas carnavalescas em coro com os artistas da película. O filme terminou às quatro horas e a maioria dos espectadores, que deixaram o cinema se dirigiu para a famosa batalha de confetes do Tênis, que naquele momento se encontrava no auge de sua folia.
A porta do clube estava cheia de foliões querendo entrar. Muitos deles, sem a carteira de sócio, faziam a maior baderna na portaria. Um bando de garotas vestidas de dominó, usando os capuzes para esconder seus rostos, brincava nas adjacências. As marotas caçoavam os rapazes com bizarras declarações de amor, sendo que, algumas exageravam em suas extravagâncias. A rapaziada, entre a excitação e a curiosidade, procurava adivinhar quem seriam as mais ousadas. Um rapaz embriagado tentou tirar o capuz de uma e foi surrado por todas. Verificou, apalermado, que os capuzes tinham sido costurados nas fantasias.
Johnny estava adorando tudo aquilo. Encostado em uma árvore próxima à entrada do clube, observava a brincadeira da moçada com muito interesse. A festa era proibida aos maiores de dezoito anos e os adultos só podiam entrar acompanhados de seus filhos. Muitos rapazes burlavam a portaria, utilizando uma
criança em troca de alguns refrigerantes. De onde estava, o garoto pode perceber que, seria difícil o seu acesso naquela maravilhosa batalha de confetes. O tumulto era grande na portaria. Havia dois porteiros, que berravam a todo o momento, contra os penetras e nenhum deles era o referido por Pé de Pata. Do lado de fora ele podia ouvir a famosa Banda Sevilha de Espanha, que animava a festa, tocando e cantando as maravilhosas marchinhas de carnaval.
As garotas vestidas de dominó continuavam a brincar pelas imediações, enquanto os rapazes tentavam descobrir a identidade das mais afoitas que, estrategicamente, procuravam driblar os pretensiosos, disfarçando a voz. Duas delas descobriram Johnny, sozinho em seu canto, e começaram a assediá-lo com brincadeiras pueris.
- Que menino lindo!... De onde será que ele saiu? – Disse uma.
- Com certeza de um reino encantado! – Respondeu a outra.
Um leve rubor aflorou em seu rosto, deixando-o acanhado, principalmente quando uma delas caçoou dele.
- Que gracinha! Ele ficou vermelhinho, vermelhinho!...
- É que tomei muito sol pela manhã! – Disse Johnny, tentando dominar a situação, pois detestava que alguém pudesse sobrepujá-lo
Uma delas começou a acariciar seus cabelos, perguntando:
- Como é seu nome?
- João Evangelista.
- Você não vai entrar no clube?
- Acho que não!
- Por quê?
- Não sou sócio
- Não se preocupe que a gente dá um jeito nisso. – assegurou a outra.
Naquele mesmo instante, o grupo de garotas com fantasias de dominó resolveu entrar no clube, cantando a sugestiva marchinha “Abre alas” de Chiquinha Gonzaga. As duas garotas abraçaram Johnny e, aproveitando a coreografia produzida pelas suas companheiras, passaram pela portaria sem o menor contratempo, levando o garoto entre elas. Já dentro do clube, as meninas disseram para Johnny que não poderia ficar com ele, pois o grupo se comprometeu a não brincar com nenhum rapaz e sim pegar peças neles. As duas despediram-se do garoto beijando-lhe as faces e se misturaram com as outras, perdendo-se nelas; a tal ponto que o garoto não pode destingi-las mais tarde.
O salão do clube estava abarrotado com foliões de todas as idades. Jatos de lança perfume borrifavam o ar, enquanto as serpentinas voavam pelo ambiente, misturando-se aos confetes, que eram jogados, como se fossem um bombardeio de flores, numa batalha de alegrias. As fragrâncias desprendidas pelas botijas das marcas mais nobres e caras enlevavam os foliões, deixando-os em êxtase constante, somado ao efeito inebriante da fórmula. O baile era juvenil, pois o infantil tinha sido pela manhã. Entretanto, àquela hora, havia mais crianças brincando, do que adolescentes pulando pelo salão. A mistura das faixas etárias provocava situações incômodas para os jovens foliões, que necessitavam um espaço mais apropriado às suas exigências. Um garoto de doze anos, pesando mais de noventa quilos, com um metro e oitenta de altura, foi impedido de brincar, sob alegação de estar machucando as crianças do recinto. O incidente deixou a mãe indignada, que
protestou pelo fato do juizado de menores ter barrado seu filho no baile da noite anterior. A direção do clube, depois de confabular com o juiz, achou por bem liberar o garoto para os bailes noturnos. A mulher ficou satisfeita com a decisão da diretoria, indo com o filho para sua mesa. O gordo, alheio a tudo aquilo, sentou-se numa cadeira, e começou a se empanturrar com as empadas, pasteis e refrigerantes à sua disposição, sob o olhar da sua orgulhosa genitora.
Um grupo de adolescentes fazia a maior algazarra no pátio, situado na parte baixa do clube, próximo ao bar. Dois deles chateavam a meninada, jogando talco nos que passavam por perto, sujando-os com o pó branco. Não foi difícil para Johnny perceber, que se tratava dos pretensiosos Wilsão e Niltão. Eles estavam na companhia de Zé Assunção, Tõe Dantas, Cleber Amorim e outros camaradas, igualmente pernósticos, conhecidos pelos garotos do centro como “Piolhos do Tênis”. Essa turma vivia diariamente no clube jogando cartas e damas, enquanto falavam da vida alheia. As moças da cidade temiam a língua ferina daquele grupo; principalmente as mais humildes, pois os velhacos não se atreveriam a comentar a vida de uma moça de família poderosa. Naquele momento eles secavam uma garrafa de vodca russa, subtraída da adega do pai de Cleber, na ilusão de que aquela bebida, por ser suave, não embebedava e deixava o hálito agradável.
Zé Assunção tinha dezesseis anos. Sendo o mais velho do grupo, rivalizava-se com os irmãos Torres no comando de sua turma. Garotão metido a rico e bonito, costumava alardear, que muitas garotas da cidade eram caidinhas por ele. Naquele momento, fazendo pose de galã, ele assediava algumas, sendo desdenhado por todas. Vendo o fanfarrão desprezado pelas meninas, a rapaziada presente começou a caçoar dele, deixando-o bastante irritado.
Já completamente bêbado, e aborrecido pelos descasos recebidos, começou a ofender algumas moças com fantasias de dominó, que mangavam dele. Nesse momento, outro garoto beberrão, resolveu intervir em favor das meninas. Tratava-se de Galeno Conde, morador do Jequiezinho e velho conhecido da turma do Tênis. Consciente de que, nos dominós encapuzados estavam escondidas às garotas mais bonitas da cidade, o malandro aproveitou a oportunidade para aparecer como herói protetor das moças. Ralhando Zé Assunção com impertinência, Galeno o deixou bastante furioso. Não admitindo uma compostura vinda do moleque mais cínico de Jequié, o rapaz olhou indignado para o insolente e aplicou-lhe um potente murro na cara, jogando-o ao solo. Os amigos de Galeno vieram em socorro do seu companheiro e, subitamente, socos e pontapés eram distribuídos numa briga violenta, que tomou conta do local. De repente, aquela parte do clube acabou se transformando numa pancadaria generalizada, onde a maioria brigava pelo puro prazer de brigar. O conflito, que era só de garotos, começou a tomar proporções maiores, quando alguns adultos embriagados entraram na briga, atingindo também o salão de festas. Foi necessário o Dr. Milton Rabello e o Sr. Nelson Andrade, presidente e gerente do clube, acompanhados da diretoria, intervir energicamente, ameaçando os brigões com expulsão definitiva do quadro de associados do clube. Com os ânimos apaziguados, a direção do clube dispersa a multidão formada no pátio e a orquestra Sevilha de Espanha recomeça a folia com a marcha “Touradas em Madri”, levando os foliões de volta ao salão.
Galeno Conde, pivô da briga, foi posto para fora do clube, pois não pertencia àquela agremiação. Não era sócio e, portanto, não deveria permanecer ali,
principalmente depois da confusão por ele promovida. Saiu do clube sob as vaias da meninada, que o detestava. Zé Assunção pegou uma pequena suspensão. Como castigo ficou sem poder frequentar às dependências do clube por uma semana. Na prática significava que o rapaz ficaria sem brincar o resto do carnaval e não poderia participar do concurso de fantasias na última noite do reinado do Momo.
A batalha de confetes retornou mais animada do que antes. Johnny foi até o bar comprou um refrigerante e foi tomar recostado em uma das janelas da parte lateral do clube. Ficou observando aquela festa numa animação implícita, pois estava sozinho naquele ambiente festivo. Conhecia alguns meninos ali presentes, mas era uma amizade superficial, fruto das trocas de revistas nas portas dos cinemas e, naquele momento, eles estavam em seus blocos padronizados. Notou que as meninas olhavam para ele; algumas sorriam e jogavam confetes. O garoto respondia àquele flerte com um leve e tímido sorriso, não se atrevendo a dar uma volta pelo salão, pois a maioria dos foliões estava fantasiada. Era grande o número de palhaços, pierrôs e arlequins, misturados com piratas, índios e caubóis. Uma linda colombina brincava no salão, arrebatando olhares em todas as direções. Era uma morena de dezoito anos e estava ladeada pelos três irmãos mais velhos, que a protegia dos impertinentes, como verdadeiros cães de guarda. Dona de um corpo escultural e um rosto apaixonante, seus olhos verdes pareciam dois faróis iluminando aquele final de tarde, deixando a rapaziada deslumbrada com tamanha beleza. Naquele momento a orquestra começou a executar a macha da moreninha e a graciosidade daquela colombina relembrou outra morena, deixando Johnny melancólico. Sentiu saudades de Vera Olívia, que naquele instante deveria estar brincando no carnaval de Ilhéus e, quem sabe, com outro garoto. Procurou não pensar muito no assunto, principalmente porque ali estavam outras garotas e nada é melhor do que um dia após o outro. Além disso, tinha consciência de que era jovem demais para alimentar ilusões.
No cair da tarde o baile tornou-se mais animado, devido à retirada das crianças, que foram para suas casas acompanhadas dos pais. Aquela batalha de confetes ficaria marcada na memória dos associados por muito tempo, devido à animação constante e pelo número de participantes. Havia foliões de outras cidades encantados com a receptividade da sociedade jequieense. Bastava um cidadão apresentar a carteira do tênis clube de sua cidade, para ter acesso às dependências do Jequié Tênis Clube. A batalha de confetes daquela tarde superou as demais realizadas em outros carnavais. Estava determinado o seu final para as dezoito horas e, atendendo aos pedidos, a diretoria prorrogou a folia por mais algum tempo e, só a muito custo, conseguiu retirar a juventude mais exaltada do salão uma hora depois.
Com o término da festa, Johnny foi até a Praça Ruy Barbosa verificar o andamento da folia naquele início de noite. Verificou que a praça estava animada, mas sem o entusiasmo do dia anterior. Sabia que na segunda feira de carnaval não havia corso e o desfile dos carros alegóricos só aconteceria no dia seguinte. Os bares estavam cheios de beberrões, com muita gente usando as mesmas roupas, com as quais havia trabalhado. A pista de patins estava animada com várias pessoas brincando sob o som do alto falante da “A Voz da Cidade”, que naquele momento apresentava um repertório especial, elaborado por Cid Teixeira e apresentado pelo seu irmão, o locutor Geraldo Teixeira. O garoto ficou algum
tempo se divertindo com os tipos exóticos e suas fantasias extravagantes. Às oito horas da noite resolveu ir embora, pois estava cansado e com fome. Foi para casa pensando na deliciosa sopa de verduras, preparada pela sua mãe, que com certeza, estaria quentinha, lhe esperando.

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