terça-feira, 9 de abril de 2019

O Quebra Pote.

                                                   J. B. Pessoa

Seu moço! Meus amigos aqui presentes! Não quero que vocês achem que eu seja um “cabra” corajoso, só porque matei uma onça! Como eu disse anteriormente: não tive alternativa. Além disso, a ajuda de Mãe Luzia foi primordial, pois foi ela quem acalmou os meus nervos, com aquele bendito chá; porque, se não fosse isso, eu não sei não! O pior poderia ter acontecido e esse proseador, que é amigo de vocês, não estaria aqui pra contar a história. Na verdade, eu fiquei um pouco triste pelo sucedido e não tenho nenhum orgulho em ter abatido um animal tão bonito que, cada dia, está mais raro em nossos sertões.
Por falar em sentimento de culpa, certa ocasião, quando eu era ainda um homem solteiro, eu cometi um pecado contra uma pequena criatura de Deus. Mas isso é outra história, por sinal muito engraçada, que eu vou contar pra vocês, após a gente tomar um cafezinho com este queijo sertanejo, que eu acho bem melhor do que aqueles, que vendem nos armazéns e mercearias de luxo, aqui em Jequié.
Meu compadre!... Tem coisas inesperadas que acontecem a um cidadão, que ele clama pela falta de sorte. Porém, quando tudo parece haver sido perdido, vem o “reverterio”. De repente a coisa muda de figura, parecendo que a Providência o está ajudando. Pois bem: numa certa ocasião, eu perdi um carregamento de finas mercadorias, em virtude de um desastre acontecido com um caminhão que ia daqui de Jequié para Livramento, via Vitória da Conquista e Brumado. Chovia muito na época e um grande temporal entre Conquista e Brumado provocou um acidente, fazendo com que o veículo derrapasse e capotasse fora da estrada, perdendo todo o carregamento. O prejuízo foi enorme. Da minha parte, eu perdi no bruto e fora o lucro, mais de três contos de reis, que naquela época representava um bom dinheiro. Eram mercadorias, que o pessoal das redondezas encomendava em minha venda e eu fazia o pedido para Salvador, que as enviava aqui em Jequié, pela Estrada de Ferro de Nazaré. Daqui os tropeiros levavam em seus burros para Iguatemi, pela antiga rota Contendas, Suçuarana e Brumado. Só que dessa vez tinha um caminhão, que ia pra Livramento pela nova rodovia chamada de Rio - Bahia, a qual passava em Conquista. De lá ia para Livramento via Brumado por outra estrada e meu tio Abílio Pessoa, homem moderno e amante do progresso, embarcou as mercadorias nesse carro, dizendo que, tropas de burros eram coisas do passado e, deu no que deu!
Fazer o quê?! Como diz o povo: “O que não tem remédio, remediado está!” Pensando assim, toquei minha vida pra frente, na intenção de vender algumas rezes que eu criava no meu sítio, ao redor de um pequeno lago, chamado Lagoa Grande. Para poder cobrir o prejuízo e entregar as mercadorias, um pouco atrasadas, aos meus fregueses, eu teria que vender uma parte considerável de meu do meu rebanho.
Naquele tempo, a minha pequena vila de Iguatemi tinha um dinamismo muito grande, que acabou desaparecendo com o tempo, em razão das migrações de seus habitantes para os grandes centros urbanos. Todos os anos, a vila comemorava o dia de Santa Rita, padroeira do lugar, com uma grande festa, a qual atraia visitantes de diversas paragens. A comunidade escolhia, entre seus cidadãos, alguém que administrasse as festividades e arcasse com as despesas do evento. O escolhido daquele ano foi o meu tio Joaquim Pessoa, o qual ficou
sendo o festeiro oficial; encargo que constituía uma grande honra, para qualquer cidadão que se prezasse. Ele administrou muito bem a festa, elaborando uma série de eventos, religiosos e folclóricos; hospedando com distinção, o vigário e os demais componentes ilustres, convidados para o grande acontecimento. O meu tio Joaquim, também conhecido como Quincas, era um festeiro muito maroto. Ele acrescentou uma série de novidades engraçadas às brincadeiras tradicionais, que ficou marcada na memória da vila e, até hoje, os mais velhos relembram com saudades.
O ponto máximo da festa era o leilão. Como os festeiros arcam o custeio da festa com o dinheiro do seu próprio bolso, detêm o direito de leiloar os artigos e presentes, que os comerciantes e cidadãos ofertam para abater as suas despesas. Raramente um leilão cobre totalmente as despesas. Por isso, só os homens de posses de uma comunidade se candidatam como festeiros.
Pois bem! Nesse ano a coisa foi diferente: Quincas, que era um excelente negociante, acrescentou às doações, artigos mais caros e fez propaganda da festa nas localidades circunvizinhas, visando com isso, atrair o pessoal de dinheiro à festa. Num lance de esperteza, criou o título de “cavalheiro do ano” o qual seria aquele que mais arrematasse artigos do leilão, para oferecer as moças.
Uma saraivada de foguetes marcou a alvorada do dia de Santa Rita, acordando os catingueiros de Iguatemi. Havia muita gente de fora, inclusive das cidades de Livramento, Caetité e Brumado, favorecendo os negócios do festeiro, que era dono de uma pensão, uma loja, uma venda, um bar e do único restaurante do lugar. Muitos dos filhos da terra, que haviam migrado para outros estados, aproveitavam aquela festividade, para visitarem a terra natal. A farra da noite anterior acabou com o estoque de vermute do bar, fazendo com que Quincas precisasse buscar algumas garrafas, na venda de seu irmão Gonçalo Pessoa, na Várzea D’água, localidade próxima de Iguatemi, pois o “rabo de galo” estava muito em moda na época.
Pela manhã houve duas missas e a celebração de 32 casamentos. Seu moço, eu fiquei com pena do padre, que terminou tudo lá pelas duas horas da tarde. Os noivos, na maioria, chegavam montados em seus cavalos, com as noivas na garupa. Era uma coisa bonita de se ver. Esses pobres roceiros aproveitavam a vinda de algum vigário, coisa rara na época, para sacramentar a união deles com suas namoradas, pois na maior parte do ano, apenas algumas senhoras abriam a igreja no domingo, para rezarem o rosário e cantar os hinos sagrados da liturgia católica. Missa mesmo, com padre e tudo, só no dia da padroeira, Natal, Dia de Reis, Sexta Feira da Paixão e Dia de Finados.
Às três horas da tarde começou a parte cômica da festa. Seu moço! Meu compadre! Eu nunca ri tanto na minha vida! Começou pelo pau-de-sebo, que era mais alto do que o padrão da região; porém, com prêmios que justificavam o esforço da moçada naquela empreitada. Depois de várias tentativas e muita hilaridade, foi conquistado por três irmãos num esforço conjunto, o qual o mais forte foi sustentando o mais fraco até atingirem o objetivo. Após a brincadeira do pau-de-sebo, veio a vez do quebra-pote. Vocês conhecem a brincadeira. Os olhos são vendados com um pano qualquer, aí rodopia o sujeito e o larga com um pau na mão, com a intenção de quebrar um pote. Só que nesse dia pegaram um bêbado, que passou longe do pote e saiu dando pauladas a torto e direito em todo mundo que passava perto dele. Seu moço, eu ri tanto, que me deu dor de barriga. Foi aí, então, que o delegado Adolfo Pessoa, meu pai, que também era o vereador que representava o distrito de Iguatemi no legislativo de Livramento, pegou o sujeito e o levou pra o xilindró, pra ele descansar um pouco, deixando
as grades abertas, para ele ir embora quando melhorasse da carraspana. Em seguida, um esperto garoto quebrou o primeiro pote e dele saíram caixas de bombons, bastões de chocolates, maços de cigarros, pares de meias e várias coisas luxuosas, de primeira linha.
O segundo pote foi mais engraçado ainda. Os rapazes quando viram o luxo do primeiro pote, posicionaram o garoto na direção certa e ficaram de expectativa para avançar no pote quebrado e agarrar os seus conteúdos. Seu moço, meu compadre! Eu nunca vi tanta gente correndo pra longe de um pote quebrado. O maroto do Quincas botou dento do pote, sabem o quê?!... Uma colméia de abelhas silvestres, daquelas que têm raiva de gente! Meus camaradas, eu ri tanto que perdi o fôlego. No momento em que o garoto se preparava para exercer seu objetivo, chega o bêbado, que cansou de ficar descansando na cela aberta, toma o porrete do moleque, exigindo o seu direito de quebrar o pote e deu tino ao seu intento. As abelhas quando viram o borrachão com o cacete na mão, perceberam que foi ele o impertinente, que havia bulido com elas. Resultado: as abelhas partiram para cima do sujeito que, quando percebeu a fria que estava se metendo, largou o pau e deu o fora, correndo numa velocidade de quem estava sendo perseguido pela morte. As furiosas abelhas aplicaram tantas ferroadas no sujeito que o curou da bebedeira em poucos segundos. A seguir ele foi novamente para o bar do Quincas e se encharcou de pinga para se curar das picadas daquelas abelhas zangadas.
Eu estava assistindo a tudo aquilo da minha venda, pois abri para uma rapaziada especial que queria tomar uísque. Eram uns parentes meus de São Paulo, que tinham saído do lugar, ainda pequenos, na companhia dos pais e estavam visitando a terra natal. Eles estavam reclamando da falta de uma cerveja gelada, pois o único refrigerador da vila era uma geladeira do bar de Quincas, que funcionava a querosene e não estava dando para suprir o consumo daquele dia. Naquele tempo, energia elétrica era um privilégio de poucas cidades e mesmo assim, funcionava precariamente. Eu era o único da vila que tinha uísque; pois, na época, o povo só tomava vermute e cachaça. A maioria das pessoas detestava uísque. Achava que tinha gosto de madeira podre!
Como eu estava dizendo: da porta da minha venda eu esperava curioso à quebra do último pote. Como diz um ditado popular, “gato escaldado tem medo de água fria”, a rapaziada receosa de uma nova estripulia por parte do festeiro, ficou sem querer se ariscar na empreitada. Foi aí então, que apareceu certo cidadão de Livramento, candidato a vereador, que gritou em alto e bom som: “Em homenagem a Santa Rita e ao povo maravilhoso desta terra, eu coloquei, do meu próprio bolso, dentro daquele pote, três notas de mil cruzeiros, luzindo de novas!”
Seu moço, até eu, que não gostava me meter em brincadeiras daquele tipo, fiquei interessado. Afinal, três mil cruzeiros era uma pequena fortuna, que dava para cobrir meus prejuízos no acidente do caminhão. Eu ainda não tinha visto uma cédula de mil cruzeiros, lançada naquele ano, que ficou conhecida como a “abobrinha”.
Fiquei atento aos acontecimentos. A garotada de São Paulo saiu da venda e se prostrou perto do pote, na perspectiva de agarrar aquele dinheirão. Aliás, a notícia de que dentro do pote tinha três contos de réis, atraiu muita gente ao local, na esperança de agarrar aquela riqueza. O bêbado voltou novamente, reivindicando o seu direito de quebrar o pote, ameaçando processar todo mundo pelo desacato, pois ele era um guarda municipal muito conceituado em Livramento. O político o apoiou naquele instante e, vendando seus olhos, deu-
lhe o porrete e o empurrou na direção certa. Dessa vez o emborrachado acertou de primeira e a multidão se atirou ao pote quebrado, do qual saiu um gato assustado, que se escafedeu para longe dali. A rapaziada quando viu o pote vazio, ficou sem entender nada. Nesse instante Quincas apareceu e gritou: “O dinheiro está dentro de uma bolceta amarrada no pescoço do gato!”. Meus amigos, coitados dos gatos do lugar! Ninguém sabia ao certo, qual foi o gato que saiu apavorado de dentro do pote quebrado e começaram a perseguir toda a gataria das imediações. O pior é que alguns entenderam que o dinheiro estava dentro do órgão genital de uma gata! A maioria da moçada que estava embriagada, não querendo trocar gato por lebre, desistiu do gato e foi atrás das “gatas”, no linguajar de hoje. Os que persistiram no intento passaram o resto da festa à procura do singular bichano.
Fechei a minha venda às oito horas e, depois de tomar um bom banho, vesti o meu melhor terno e fui dar umas voltas pela praça, para apreciar as moças de fora, que vieram para festa. Fiquei conhecendo uma formosura, que era colega das minhas irmãs na Escola Normal de Caetité e acabei fazendo amizade com uma turma de normalistas. Durante o leilão arrematei alguns presentes, que ofereci as moças que eu acompanhava. O leilão foi muito animado e foi um verdadeiro sucesso. Um rapaz que se prezasse, tinha que arrematar qualquer coisa e ofertar a alguém. Os que queriam aparecer como bons partidos concorriam com outros, para mostrarem suas importâncias na localidade. Um finório conhecido como Miguelzinho Bittencourt, afamado na região como moço fidalgo, foi o que mais prendas ofereceu as moças; principalmente para a beldade de Caetité que estava comigo, ganhando o título de cavalheiro do ano. Contudo, no baile que aconteceu depois do leilão, a moça só dançou comigo.
Enquanto o leilão acontecia, um bando de marotos liderados pelo bêbado de Livramento, ainda perseguia os gatos do lugar, na procura das famosas notas de mil cruzeiros. O baile acabou às três horas da manhã e ainda se via um bando de marmanjos perseguindo os gatos da vila, não deixando os mais velhos dormirem em paz. Depois de acompanhar as moças até a casa onde estavam hospedadas, fui para casa dormir um pouco, pois eu tinha que ir à minha roça, na manhã seguinte, para fiscalizar minha plantação de algodão.
Descansei apenas três horas, pois acordei bem cedo naquela manhã. Às sete horas eu já estava cavalgando no meu alazão em direção aos Três Umbuzeiros, onde ficava a minha lavoura. Fui num trote apressado, pois eu tinha um encontro com os funcionários do banco que havia financiado a minha plantação. Ao atravessar um riacho, parei para acender o meu cigarro de palha, enquanto meu cavalo bebia água. Amigos!... Vocês não imaginam o que eu encontrei pelo caminho!... Seu moço, lá estava o danado do gato com a bolceta amarrada ao pescoço, em cima de um pé de pau, olhando para mim, preparando-se para fugir. Não pensei duas vezes: saquei o meu revolver e atirei no pobre gato, que tombou morto ao chão. Abri a bolceta, que era usada para colocar tabaco, e lá estava às três abobrinhas com o retrato de Pedro Álvares Cabral. Coloquei o dinheiro na minha carteira, bastante contente com o achado. Contudo, um sentimento de culpa me acompanhou o resto do dia. Eu, que adoro animais, fui cruel com um bichinho inocente, que nunca fez mal a ninguém.
Enterrei o bichano no mato, debaixo de um juazeiro, pois não queria deixar rasto da minha sorte. Eu não pretendia contar a ninguém a minha façanha. Só fiz isso, quando acusaram o político de mentiroso, dizendo que ele tinha feito o povo de Iguatemi de besta. O pessoal da vila não acreditou que, no
gato havia uma bolsa com três contos de réis. Seu moço, meus amigos, aqui pra nós: só mesmo um imbecil teria uma idéia de jerico daquelas. Se não fosse a minha sorte, o dinheiro estaria perdido para sempre. Para fazer justiça ao candidato a vereador, mostrei para todo o mundo as três notas de mil cruzeiros, mas não revelei que havia matado o pobre gatinho.
A festa de Santa Rita daquele ano ficou na memória dos catingueiros da região, por muito tempo. Quincas e alguns dos cidadãos respeitáveis da vila deram os seus testemunhos a respeito da veracidade do fato: No pescoço de um gato havia uma bolceta de fumo, com três mil cruzeiros, capturado pelo esperto Manoel Pessoa. Quincas fez um excelente negócio com a festa e outros comerciantes também tiveram seus lucros.
Aqueles três mil cruzeiros me salvaram do prejuízo, com a mercadoria perdida no desastre. Porém, eu nunca me esqueci do gatinho que matei. Com o tempo me convenci de que tinha feito a coisa certa, ao me lembrar de um ditado popular, hilário e cínico ao mesmo tempo, que diz: “Morreu?!... Antes ele do que eu!” Pensando assim toquei minha vida pra frente. Naquele ano, a safra foi boa e ganhei bastante dinheiro com a minha lavoura, pois o preço do algodão subiu depois da entrada dos americanos na Segunda Grande Guerra.
Pois é isso aí meu compadre! Como diz o povo: “Não há mal que dure para sempre!” ou então: “Deus dá o cobertor conforme o frio!” Agora vamos dormir que já é tarde e o frio está de rachar! Amanhã é outro dia e o compadre Guilhermino vai nos contar o caso da onça que correu atrás do Doutor Celi de Freitas, no lugar, onde hoje é a Rua do Jequié Tênis Clube.

Sétimo capítulo do livro não publicado, “As Aventuras de um Catingueiro

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