segunda-feira, 25 de março de 2019

O Caçador de Onças.

                                        J. B. Pessoa

Eu nunca vi nenhuma dessas coisas, que dizem existir nas matas e caatingas desses sertões do Nosso Senhor Jesus Cristo. Se dissesse que vi, estaria mentindo. Porém, como muita gente boa disse que já viu, e o compadre Zé do Barulho afirmou que ele botou pra correr o danado do caipora que lhe desrespeitou, eu acredito. Na verdade, sempre tive medo de me embrenhar nas matas fechadas, principalmente as mais distantes, onde vivem a suçuarana, o caititu e a temível onça pintada. Além disso, sou um modesto caçador, apesar de ser excelente atirador. Quando eu me atrevia a entrar em matas inóspitas, era na companhia do meu compadre João Golino, o qual era o maior caçador que conheci até os dias de hoje. De resto, só pelas redondezas; umas codornas aqui, algumas perdizes ali; bastantes mocós e preás e nada mais do que isso. Aliás, deixei de caçar quando fui alertado pelo padre Climério Andrade que, o único animal que mata pelo prazer de matar é o homem! Além disso, nos dias de hoje, existe muito caçador para pouca caça, o que torna a prática dessa distração uma coisa muito perigosa.
Por falar em perigo, algum tempo atrás quando eu vivia em Iguatemi, conheci um cidadão de Feira de Santana, chamado João Durval da Silva Quadros. Era advogado e tinha sido vereador em sua terra. Ele apareceu em nossa vila, querendo caçar “onça braba” e estava à procura do famoso João Golino. Era um rapaz alto, moreno, elegante e jeito de fidalgo, o qual aparentava uns vinte e cinco anos de idade. Vestia um terno de linho branco e usava um chapéu estranho, desses que a gente vê nos filmes de selva africana. Era tirado a bonito, pois olhava para as moças com trejeitos dos galãs de filmes românticos, e falava na voz adocicada dos atores de rádio-novela. Pediu a uma delas que lhe indicasse o melhor hotel da “cidade” e ficou hospedado na pensão do meu tio Quincas Pessoa, a única existente na vila.
O doutor Durval, como gostava de ser chamado, foi apresentado ao pessoal do lugar, pelo meu tio Abílio Pessoa, como um grande caçador. Depois do jantar, ele compareceu na minha venda, na companhia de Golino e Quincas. Ficamos conversando, na companhia de outros catingueiros, até altas horas. Em meio dos tragos de uísque da última garrafa que eu dispunha, contou pra gente que tinha caçado na Floresta Amazônica e nas savanas africanas. Enquanto o sujeito dissertava suas aventuras, Golino desconfiava de sua prosa esnobe e, saboreando a sua destilada, me disse ao pé do ouvido: “Né, esse aí tem jeito de caçador de araque! Vai ver que os bichos que ele pegou saíram da carochinha!” Falei pra Golino, que os animais africanos que o doutor dizia ter abatido, eram realmente grandes. Ele então olhou para mim, balançando a cabeça negativamente, e disse com desdém: “Vamos ver, como ele se sai, aqui na caatinga”.
O doutor era bom de prosa e, entre mentiras e verdades, fiquei gostando dele. Afinal, como já disse a vocês, se o pescador não aumentar o tamanho do peixe, a estória fica sem graça. Aqui mesmo, nesse momento dessa noite fria, tomando um cafezinho quente e pitando nossos cigarros e tiberos, estamos nos divertindo, contando os nossos “causos”. Acredite neles quem quiser ou então vai para casa dormir. Voltando ao caso do doutor Durval, ele foi o primeiro caçador a relatar pra mim, a existências de bichos, os quais eu viria a conhecer, tempos depois, no cinema aqui em Jequié.
O doutor Durval tirou de uma caixa comprida de couro, forrada de veludo, o rifle mais bonito que eu já tinha visto. Aliás, eu só, não! A peãozada que estava proseando na minha venda ficou abestalhada ao ver uma arma daquele porte. Era um rifle americano de repetição e de grosso calibre. Olhando para a velha espingarda de Golino e verificando que era uma arma antiga, das que se carrega pela boca, comentou orgulhoso a respeito da sua. “Essa é uma arma moderna! Se o caçador errar o tiro, engatilha outra bala na hora!” Golino sorriu com desprezo e despejando outro gole de pinga goela abaixo, olhou bem dentro dos olhos do doutor e disse: “Se a onça deixar, meu camarada! Se a onça deixar!” Depois fingindo temor, disse em tom de preocupação: “Se o “cabra” errar o tiro, ela, que é danada de ligeira, não dá chance ao caçador engatilhar! É um bicho treiteiro e danado de tinhoso, que não tem medo de nada. Nesse momento todo mundo ficou calado e ele explicou: “Todo caçador sabe que quando está caçando uma pintada é também uma caça”! A única vantagem que o cristão leva da fera é quando ele tem um bom cachorro!” Golino pegou a sua espingarda e, acariciando a arma, mostrou ao doutor e disse: “Meu avô, que era italiano a trouxe da Itália e eu herdei dele. Só tem um cano e bem grosso! Carrego com bastante pólvora e coloco como bala um rolimã do tamanho de uma bola de gude e vou atrás da comedora de gente! Aí seu doutor: sou eu ou ela!”
O doutor ficou pasmo com o relato de Golino. Com os olhos arregalados tomou mais um trago de uísque e, disfarçando o seu receio, disse que nunca tinha errado um tiro. Como em toda conversa de caçadas, aparecem os heróis que já tinham abatido várias onças, o doutor ficou mais animado. Lá pelas onze horas da noite, quando a gente estava na maior animação, chega um vaqueiro do povoado de Várzea d’Água, procurando por Golino. Ele disse, na maior inquietação, que uma onça braba rondava o lugar, ameaçando os moradores daquela localidade e ele veio pedir ajuda dos caçadores da redondeza. Golino serviu para o homem uma dose de cachaça e, olhando para todos, disse sorrindo: “Meu camarada, você esta com sorte! Aqui na venda do meu compadre Manoel Pessoa estão reunidos os maiores caçadores de onça da região!” João Golino começou a apresentar para o vaqueiro os fanfarrões da noite, que logo foram tirando o seu corpo fora! Uns diziam que tinha roça para cuidar, outros que a mulher estava doente e todos inventaram uma desculpa qualquer, indo embora, porque já era tarde. O vaqueiro ficou sem entender nada. Golino serviu ao homem mais uma dose, que ele tomou de um gole só. A seguir, tomou a sua e, sorrindo, apresentou o doutor ao vaqueiro dizendo: “Este distinto cavalheiro é o Doutor João Durval da Silva Quadros, que veio para nossa terra à procura de uma onça bem grande, pra tirar o couro e dar de presente à noiva dele!” E depois virando para a cara assustada do doutor, lhe disse olhando nos olhos: “Homem!... Quero ver você, depois me dizer, que já abateu um bicho mais arretado do que essa onça lá da Várzea D’Água”.
Seu moço!... Meus amigos, aqui presentes! Olhei para o doutor e não vi nenhuma animação por parte dele. Pensei comigo mesmo: “Será que esse homem é também um engodo?!” Senti que o “cabra” estava com medo! Golino olhou para mim e me disse à surdina: “Né, esse aí de caçador não tem nada! Vamos ver amanhã!”
Tranqüilizamos o vaqueiro que pernoitou com a gente e marcamos a caçada para a manhã seguinte. Fomos todos dormir lá pela meia noite, depois de deixar o doutor na pensão. Pela manhã, bem cedinho, eu e Golino fomos acordar o caçador, que dizia estar sofrendo de uma enorme enxaqueca, a qual o
deixava de corpo mole. Pedi a Dona Idalina, cozinheira da pensão, que preparasse um dos seus famosos chás, os quais levantavam até defuntos, e dei ao doutor para curar a sua dor de cabeça. O doutor recusou o chá, dizendo que era um homem esclarecido e só tomava remédio de farmácia. Nesse momento notei que o sujeito estava com medo. O doutor estava fazendo corpo mole, para não ir atrás da onça. Percebendo a manha do grã-fino, e querendo caçoar do coitado, Golino disse ao doutor com voz firme: “Se você quer mesmo um couro de onça, a hora é essa! Vai ter um bocado de vaqueiros, com seus cachorros, que vão ajudar a gente pegar o bicho!” Golino, querendo tranquilizar aquele caçador mofino, disse em tom paternal: “O doutor só vai ter o trabalho de atirar com essa lindeza de arma que carrega consigo; e o resto a gente faz!” Nesse momento, eu senti uma animação repentina por parte do doutor, que levantou da cama e disse se desculpando: “Eu não devia ter bebido tanto, ontem à noite!”
Montamos em nossos cavalos e rumamos para a Várzea D’Água. O vaqueiro começou a relatar casos de onças e caçadas da região, nos afirmando que aquela era a maior onça que ele já tinha visto. Virando-se para o doutor, disse animado: “É do tamanho de um jumento! O doutor vai possuir uma lindeza de couro de onça!” Chegamos ao povoado às oito horas e fomos à venda do meu primo Armindo Matos, para encontrar os capiaus do lugar. Havia muita gente e o reboliço era enorme. Outro vaqueiro, que também dizia ter visto a onça, jurou pelo “creio em Deus Padre” dizendo que a pintada era a maior onça que ele já tinha visto na vida. Olhou para a cara assustada do Doutor João Durval e disse animado: “É maior do que um boi!” Seu moço!... O doutor João Durval quando ouviu aquilo, engoliu seco e, engasgando, disse que estava indisposto devido à sua enxaqueca. Golino alertou ao doutor, que a hora era aquela, e se ele não fosse atrás da onça, o povo do lugar iria alardear que ele era medroso. O doutor respirou fundo, procurando coragem e depois, numa curta animação, falou grosso: “É isso aí, pessoal. Vamos atrás da “bicha!” Golino me chamou e disse: ”Né, pegue o seu cachorro que os meus estão prontos.” Naquela ocasião eu tinha um perdigueiro que era chamado de Petí. Nunca conheci um cachorro mais valente do que aquele. Morreu de velho e até hoje tenho saudades dele. Golino tinha dois, mas não eram “raçados” que também eram valentes. Depois de um bom café e uma deliciosa farofa de ovos feita pela negra Maria, nos despedimos da peãozada tomando um “rabo de galo” para dar coragem. O doutor recusou a bebida, pois achava extravagante aquele mistura de vermute com cachaça, muito aquém do seu refinado gosto e lamentou não ter trazido de Feira de Santana o seu “scotch”.
O sol estava alto quando nos despedimos do pessoal da Várzea D’Água e nos embrenhamos pela caatinga adentro, seguindo o rastro da onça. A cachorrada latia animada e o doutor Durval suava dentro de um elegante terno de linho branco, usando o chapéu estranho, dizendo serem trajes típicos dos caçadores que se prezam. Golino olhava o sujeito com certa antipatia, pois o doutor era daquele tipo urbano, metido à besta, o qual achava que todo sertanejo era tabaréu. Seguimos numa trilha que ia dar no velho cemitério, o qual estava abandonado, pois os catingueiros do lugar diziam que nele, morava um lobisomem. Resolvi caçoar do doutor e disse para Golino: “A gente precisa voltar antes do escurecer, pois naquele cemitério mora um lobisomem!”. Golino olhou para mim, piscando o olho e disse fingindo medo: “Né!... Sei não!... Pelo tamanho que dizem ter a onça, eu desconfio que seja o danado! E aí, meu amigo, só bala de prata e nós não temos nenhuma!”.
Seu moço!... Meu compadre!... Meus amigos aqui presentes! Pasmem: O semblante do doutor mudou radicalmente. De moreno que era, ficou branco de medo! À medida que a gente entrava pela capoeira, o doutor ia ficando mais nervoso ainda, e se derretia dentro daquele terno de fidalgos. De repente os cachorros farejaram alguma coisa e começaram a latir. Nesse momento encontramos um recente rastro de onça, que dava para uma parte da caatinga, onde a mata era mais rala, devido à existência rochedos e imensos solos rochosos, cujas fendas acumulavam água, as quais eram denominadas de caldeirões pelos catingueiros. Golino cochichou comigo, tramando suas zombarias e, com a minha ajuda, começou a caçoar do doutor: “Né, olha aqui o volume desse rastro! Pela dimensão da pata se conhece o tamanho da onça! Se o doutor não estivesse aqui com a sua experiência internacional, eu dava o fora!” Nesse momento clamei como se estivesse morrendo de medo: “Valei-me meu bom Jesus da Lapa, que sou muito moço pra morrer!” Seu moço!... O doutor não disse nada! Calado estava e calado ficou tremendo de medo, com seus olhos arregalados, olhando para todos os lados, segurando o seu belo rifle em posição de combate. A essa altura comecei a ficar com pena do sujeito, enquanto o sorriso de satisfação estava estampado na cara de Golino.
Eram mais ou menos umas quatro horas da tarde, quando paramos para descansar e tomar um gole d’água. Logo após, os cachorros ficaram mais agitados, latindo muito alto. Nesse momento soltamos os três e corremos atrás deles, no rastro da onça. Pouco depois eles acossaram o felino em cima de uma grande pedra, bem perto da gente. Colocamos nossas espingardas em punho, ao passo que o doutor João Durval ficou parado, imóvel como uma estátua. Golino olhou para o sujeito e gritou com vontade, enquanto a onça permanecia em cima da pedra, prestes a dar seu bote: “A onça tá aí, vai que ela é sua doutor!” Seu moço, eu não quero nem contar! Pois, até eu, que estava acostumado a ir a caçadas com meu compadre João Golino, naquele instante fiquei com medo! Quando a onça deu aquele urro pavoroso e pulou em cima da gente, Golino atirou com aquele canhão, que ele chama de espingarda, acertando um grosso rolimã na cabeça da “bicha”, enquanto ela pairava no ar!
Passando o susto, olhei para a onça que jazia no chão, verificando que a pintada era realmente grande. Nesse exato momento, enquanto Golino recarregava a sua arma, sentimos um fedor de latrina suja e olhamos para o doutor, que permanecia imóvel branco como uma figura de cera. Então notamos que o sujeito tinha se borrado todo! Cagou nas calças! A cena foi trágica e cômica ao mesmo tempo. Golino sorriu com satisfação, enquanto eu fui levar o doutor para tomar um banho num dos caldeirões daquele lajedo. Golino, que continuava se divertindo com a má sorte do doutor, gritou para mim: “Né!... Toma cuidado para não sujar a água do caldeirão! O povo precisa dela!”
Depois de um bom tempo se banhando e lavando sua roupa sem sabão, o doutor, visivelmente envergonhado, se recompôs, dizendo com uma voz abatida: “Eu não devia ter bebido tanto, ontem à noite!” Golino pegou o seu facão e tirou um galho de uma árvore, fazendo dele um grande bastão. Ele amarrou as patas da onça, uma na outra, introduzindo o bastão por entre elas e carregamos a finada até a Várzea D’Água. O doutor Durval ia seguindo a gente, todo cabisbaixo, murmurando: “Eu não devia ter bebido tanto!”.
O sol estava entrando por entre os morros, quando chegamos à estrada de rodagens e avistamos um caminhão que vinha de Livramento e ia pra Brumado. O doutor Durval fez um sinal com a mão e o motorista parou. Ele acertou a viagem e partiu naquele caminhão, depois de pagar a Golino o acerto
prometido. Parou em Iguatemi e pegou as suas coisas na pensão, acertando as suas contas. Despediu-se de Dona Idalina, dizendo que estava adoentado e disse se desculpando: “Eu não devia ter bebido tanto, antes de uma caçada como aquela!” E balançando a cabeça, contrariado, entrou na cabina do caminhão, partindo da caatinga para sempre.
Lá na Várzea D’Água a gozação foi geral. À tardinha, os capiaus do lugar se reuniram na venda do meu primo Armindo Matos, para mangar daquele janota metido a galã. Confesso para vocês, que fiquei com pena do doutor. Como diz um velho ditado: “Quem tem cu, tem medo” O que aconteceu com ele, poderia ter acontecido com qualquer um. Foi puro azar. Eu mesmo quase defeco nas calças, naquela aventura do Fantasma Lenhador, em São Paulo. O doutor Durval era um bom sujeito; um tanto esnobe, mas era bom de prosa. Apenas mentia mais do que outros prosadores. Quando alguém se lembrava do caso, tempos depois, se referia a ele pelo apelido de “João Caganeira”. Dizem que hoje, ele é uma pessoa muito importante na sociedade soteropolitana.
Pois é, meus amigos! Como diz a sabedoria popular: “Com boi brabo, onça pintada e mulher fuxiquenta, só se metem quem quer encrenca!” Agora vamos tomar um cafezinho quente e pitar um gostoso cigarro de palha, feito com o fumo que Seu Fulô trouxe Brotas de Macaúbas e ouvir do meu compadre Manequito, contar mais um caso de onças.

Quinto capítulo do livro não publicado, “As Aventuras de um Catingueiro”.


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