domingo, 24 de fevereiro de 2019

O Caso do Fantasma Lenhador.

                                    J. B. Pessoa

Como eu estava dizendo a seu Manequito, nosso amigo aqui presente, famoso matador de onça braba que, quando a gente conta um “causo”, enfeita um pouco para a história ficar interessante. O povo é que aumenta e depois fica botando culpa no proseador. O compadre está fulo de raiva, porque andaram astuciando que ele havia acertado, com um rifle “papo amarelo”, a trezentos metros de distância, um tiro entre os olhos!... De quem?!... Uma pulga! Minha Santa Filomena! Quem pode com um povo desses?! Deixe estar, meu amigo e não se zangue. Vamos tomar um cafezinho quente para acalmar os nervos e esperar uma carne de sol, que está assando no espeto. Os camaradas vão se achegando, que eu vou contar um caso, que sucedeu há algum tempo, quando eu era viajante. Mas vou avisando: Quem não acreditar que fique calado, e não é para ninguém rir, pois não sou contador de piadas e nem tenho cara de palhaço.
Seu moço! Meu compadre! Amigos aqui presentes! Acontece cada coisa na vida de um cristão, que a gente fica matutando, pra saber se aconteceu ou não! Se ele está de miolo mole, caducando fora do tempo ou ensandeceu de vez! Bom: vocês é que vão julgar. Já disse antes, que eu não acreditava em fantasmas, visagens, assombrações e coisas dessa natureza. Porém, não boto a minha a minha mão no fogo, negando ou afirmando nada. Quando meu compadre Zé do Barulho, aqui presente, me contou que a caipora o cercou no mato e pediu fumo, eu acreditei! Pois tem coisa nesse mundo de Nosso Senhor Jesus Cristo, que até o diabo duvida. Enfim! O caso que vou contar tem dessas coisas e vou relatar direitinho pra vocês, “tintim” por “tintim”, sem tirar e nem acrescentar uma vírgula, sequer.
Há muito tempo atrás, no começo da guerra, eu resolvi correr mundo. Ainda era moço, com muita disposição, porém chegando à idade da responsabilidade. Eu queria algumas aventuras, antes de constituir uma família, que é a sina de todo homem de bem. O meu primo, Francisco Nunes Dias comprou um caminhão novo e ia levar um carregamento de mamona pra São Paulo. Ele era um homem bem vivido e muito viajado, conhecido por todos como Chico da Lagoa Grande. Aproveitei a oportunidade e embarquei com ele, visando esse destino. Saímos de Iguatemi de manhãzinha e fomos pernoitar em Vitória da Conquista, pois naquele tempo a estrada era de chão e a viagem demorava muito, principalmente quando chovia. De conquista, em diante, pegamos uma estrada nova, que era larga e toda de cascalho, que ficou conhecida com Rio – Bahia. Foi uma viagem maravilhosa, com a gente proseando o tempo todo. Eu, Chico e Tião de Maria Rita, que era o seu ajudante de motorista, que naquele tempo a gente chamava de chofer.
Chegando a cidade de São Paulo, Chico entregou a mercadoria a seu destinatário e fomos passear pelo centro da capital paulista. Fiquei como um palerma diante de tanta novidade e beleza. Tião caçoava de mim o tempo
inteiro, me chamando de tabaréu. Afinal, o filho da mãe conhecia bem a cidade e havia muitos anos que, ele e Chico já tinham feito dezenas de viagem para o sul. Eu, marinheiro de primeira viagem e bem mais jovem do que eles, me tornei motivo de chacota daqueles marotos.
Tião era irmão de leite de Chico. Ele era filho de uma mulata chamada Maria Rita e de um caboclo que havia morrido na Guerra de Canudos, um pouco antes dele nascer. Seu nome era Sebastião Pereira da Silva. Tião e Chico cresceram juntos como verdadeiros irmãos e ambos foram amamentados pela mesma amadeira, a bem amada Mãe Maria. Celeste, que era mãe de Chico, tinha pouco leite, quando seu filho nasceu e recorreu à amiga, pois tinha leite de sobra e, além disso, os laços de amizade entre as duas mulheres vinham de longas datas.
Chico conhecia um italiano que estava recrutando trabalhadores para um serviço especial no interior do estado. Como eu tinha instrução, sabia ler, escrever e contar, fui apresentado ao homem, que me contratou como feitor de um bando de peões, que iriam desmatar uma área no oeste paulista, para uma plantação de café. Seu moço! Meu compadre! Foi aí que começou toda a minha desventura. Se eu tivesse ficado na capital, trabalhando em qualquer coisa, poderia ter ganhado pouco dinheiro e me divertido mais. Porém, a cobiça foi maior, pois o italiano me ofereceu uma boa quantia, para gerenciar aqueles bandos de rudes trabalhadores, vindos dos quatro cantos do país.
O grupo era grande. Tinha uma turma, vinda do norte, lá das bandas de Pernambuco e Alagoas, que eram verdadeiros jagunços. Alguns tinham mais mortes nas costas do que cabelos nas ventas. Não tinham medo de nada, só alma d’outro mundo! Tinha dois louros alemães de Santa Catarina e um negão da Bahia, que eram tão altos, que eu com um metro e noventa de altura, tinha de olhar de baixo pra cima. Todo aquele pessoal, que tinha sido contratado pelo italiano, se portava de maneira esquisita, como quisesse se esconder de alguma coisa.
Naquela época, o mundo estava pegando fogo, principalmente com a entrada dos americanos na guerra. O meu velho amigo Tião me chamou no particular e me disse: “Né, meu amigo, sei não! Esse povo aí tem cara de ser parente do Cão! Vou deixar esse pacote com você e só não vou contigo, porque Chico precisa muito de mim! Toma cuidado pra a cobra não te oferecer o cachimbo!”
Eram sete horas da manhã de uma segunda feira, quando Tião de Maria Rita e Chico da Lagoa Grande se despediu de mim, me deixando sozinho, sendo chefe de um bando de cachorros brabos. Pouco depois, verifiquei que no pacote que Tião deixou comigo, continha uma pistola de dois canos, calibre 38 e uma caixa de balas que guardei num embornal de couro. Logo depois, todo o grupo foi acomodado em um velho caminhão e tocamos viagem para o nosso destino.
A primeira amizade que eu fiz, foi com um velho gaúcho de uns sessenta anos, que tinha uma harmônica de oito baixos, muito bonita, mas não sabia tocar direito. Peguei aquele fole e sapequei uns xotes e maxixes, deixando a
moçada animada. O negão da Bahia, conhecido como João de Dina, pegou seu pandeiro e entrou na folia. A viagem tornou-se animada, pois sentados em cima dos sacos de mantimentos, que o caminhão levava, fomos tocando e cantando as modas que cada um gostava e acabei fazendo amizades com todo o mundo. Aquele bando de peões brabos foi aos poucos, se transformando em pessoas amáveis, devido ao fato de estarem longe de suas gentes e da necessidade de um poder contar com o outro.
Chegamos ao nosso destino pela manhã bem cedo. Viajamos por uma estrada cheia de buracos, que era caminho de carro de boi. Tínhamos dormido ali na carroceria do caminhão e acordei com o corpo todo moído. Logo depois, saí pela redondeza na companhia de João de Dina, para verificar se por ali haveria rastro de onça, pois era uma mata fechada com poucos lugares vazios. Antes de voltar para a cidade, o italiano explicou para todos, que aquele lugar seria desmatado, para se transformar numa grande fazenda, e que a madeira que a gente ia cortar, o proprietário iria vender e aplicar o capital na própria terra.
Não tive nenhuma dificuldade em organizar os peões em suas tarefas de trabalho. Mandei edificar um rancho de pau a pique com cobertura de palha, para servir de abrigo e dormitório, enquanto durasse o nosso trabalho. Começamos a nossa lida na maior animação. Foi um dia muito produtivo e no final da tarde, depois do trabalho, após uma refeição na base do feijão com jabá e arroz carreteiro, fomos dormir mortos de cansaço. Seu moço!... Foi aí que começou o nosso drama. Lá pela volta da meia noite fui acordado por João de Dina, um pouco assustado, que me disse baixinho: “Né, tem gente de fora cortando madeira na mata!” Era noite de lua e estava claro, quase como um dia. Ficamos em pé para ouvir melhor, de onde vinha aquele de machado cortando. No silêncio da noite, aquelas machadadas foram ficando mais assustadoras, na medida em que o tempo passava. Nesse momento outros peões foram acordando e fomos juntos averiguar o que estava acontecendo. Foi aí então que percebi que eu estava no comando de uma turma mais armada do que uma volante policial. Todo mundo de revolver na mão procurando o sinistro lenhador. Após meia hora de investigação, com os nervos à flor da pele, começamos a discutir, pois a gente não sabia com certeza, de onde vinha aquela zoada de machado cantando. Nesse exato momento, o velho gaúcho acorda e, com um colt, calibre 45, grita: “Barbaridade thê! Um homem não pode dormir em paz?” Depois, ciente da situação, bradou: “Deixa comigo que eu boto o sujeito pra correr!” Dito isso saiu com alguns peões à procura do misterioso lenhador. Nesse mesmo instante, todos verificaram que o som das machadadas havia desaparecido. Dividimos a turma, que era de vinte homens, contando comigo e saímos pelos quatro cantos da mata procurando o invasor e ninguém foi encontrado. A busca durou cerca de uma hora e todos estavam nervosos. Depois de longas conversas e divagações sobre o fato acontecido, sentamos em volta da fogueira e o cansaço tomou conta de todos. Os homens foram dormir, ficando apenas o velho gaúcho e eu, ainda divagando sobre o caso. O sono
tomou conta de mim e entrei no rancho para dormir, deixando o velho de vigília, que ficou acordado por um bom tempo, sentado em volta da fogueira com seu revolver na mão. Não sei por quanto tempo eu dormi! Só sei que acordei de sobressalto, com Zé das Alagoas, um dos homens mais valentes daquela turma, me dizendo, assustado: “Né, meu compadre, o homem voltou novamente!”
Seu moço! Meus camaradas de prosa! Naquele momento meu sangue gelou. Como eu já disse pra vocês, que não sou mofino, mas com esse tamanhão todo, valentia é uma qualidade que nunca carreguei comigo. Eu estava com medo. Nesse momento acordou um dos louros de Santa Catarina e fomos os três, dar uma olhada pelas redondezas. Notei que os dois companheiros não disfarçavam o medo que sentiam e, resolvendo dar uma de valente, falei: “Se eu pegar esse sujeito ele vai se arrepender de ter nascido!” O alemão olhou para mim e disse apavorado: “Se for desse mundo, meu amigo! Se for desse mundo!” Engoli seco! Nesse momento foram acordando os outros peões, todos de arma em punho e olhos arregalados. Andamos em silêncio total, com nossos nervosismos fazendo-nos ouvir zoadas por todos os lados. Começamos a discutir novamente. Uns diziam que era de um lado, outros diziam que era do lado oposto e ninguém sabia com certeza, de onde vinha aquela zoada sinistra. De repente Zé das Alagoas sacou seu trinta e oito e sapecou uns tiros em direção da mata. Todos fizeram o mesmo. Seu moço! O barulho foi tanto, que eu digo pra vocês que, se fosse coisa desse mundo, o sujeito estaria correndo até hoje! Nesse momento, o velho gaúcho que estava dormindo dentro do rancho, acordou e veio gritando com seu colt em punho. “Barbaridade, vocês fazem a festa e não me convidam?!”
Seu moço! Meu compadre! Depois daquela saraivada de tiros, calibres 38 e 45, o silêncio que veio depois, foi ainda mais atemorizante! Ficamos por alguns segundos sem dizer nada. Um dos peões colocou mais lenha na fogueira, pois a temperatura começou a baixar e todos foram, um a um, sentando em volta do fogo. A lua estava uma beleza com sua claridade prateada, que me fazia lembrar o meu pé de serra. João de Dina tirou de um embornal uma garrafa de cachaça, tomou uns goles e passou para mim. Nunca fui muito de beber, mas numa ocasião como aquela, uns bons tragos não iria fazer mal algum. Dei uma boa bocada da branquinha, que naquele momento deslizou como mel em minha garganta. Todos fizeram o mesmo. Sentados em volta da fogueira, a “peãozada” começou a relatar as aventuras de terror que tinha vivido. O que mais me impressionou, foi um caso que o alemão contou. Na terra de seus avôs, na Europa Central, aparecia um maligno lenhador, que nas noites de lua cheia decepava a cabeça das pessoas. Seu moço! O pavor tomou conta de todos e ninguém dormiu mais naquela noite! Era mais ou menos quatro horas da madrugada e todos viram o sol nascer sem pregar os olhos.
O dia que seguiu àquela noite tenebrosa, foi ensolarado. Os peões trabalharam com pouco ânimo, sempre comentando o acontecido. Alguns já estavam pensando em dar o fora. Zé das Alagoas foi o primeiro a se manifestar e
me disse à surdina: “Né, meu amigo! Se fosse coisa viva, animal ou gente, você podia contar comigo! Isso é coisa do Demo, é arte do Cão! Só fico aqui mais uma noite e pronto. No final daquela tarde, depois de um novo dia de trabalho, os peões jantaram em silêncio e depois tomaram uns goles de aguardente. Lembrei-me então, que o italiano pediu para que eu proibisse o uso de bebida entre os trabalhadores. Mas depois de toda aquela turbulência eu seria doido se proibisse alguma coisa. A noite chegou fria com sua luz lunar esplendorosa. João de Dina me assegurou, com toda a certeza, que era noite de lua cheia. Os peões foram dormir depois do jantar, ficando apenas o velho e eu tocando umas modinhas em seu “pé de bode”. Aliás, ele me afirmou que ainda não tinha escutado o tal fantasma lenhador! O velho gaúcho me assegurou que naquela noite ele não iria dormir até que o sacana aparecesse. Ficamos de sentinela até altas horas, eu e ele, na espera do sinistro lenhador. Lá pelas tantas, adormeci de cansaço, sendo acordado, horas depois, pelos dois alemães. Zé das Alagoas, que apareceu logo depois, sussurrou em meu ouvido: “Meu camarada, o Belzebu está solto”! Ficamos algum tempo em silêncio, na expectativa dos acontecimentos. O som das machadadas estava mais forte do que antes. Nesse momento, um vulto apareceu por entre as moitas, atrás das árvores e, sem que ninguém ordenasse, todos abriram fogo contra aquele inimigo invisível. Eu tive nítida impressão, que aquele vulto era algum animal selvagem. Porém, um caboclo esquisito que falava pouco, conhecido entre os peões como Edgar Mineiro, afirmou para todos que se tratava de um lobisomem. Seu moço!... Olhei para todos e constatei que, aquele bando de homens valentes estava se borrando de medo! O velho gaúcho, que tinha ficado de vigília, acabou ficando cansado e foi dormir dentro do rancho, acordou naquele momento fulo de raiva com o barulho dos tiros. Quando soube que havia aparecido um lobisomem, seu semblante modificou-se completamente. Ele olhou muito sério para mim e disse: “Manoel, meu filho! A cobra vai fumar! Para abater essa besta aí, vai ser preciso uma bala de prata!”
Seu moço! Meus camaradas aqui presentes nesta noite fria! Fiquei todo arrepiado! Olhei para aquela turma de peões e não vi nenhuma consistência neles! João de Dina foi o primeiro a se manifestar e gritou: “Vou dar o fora! Não estou acostumado a brigar com alma penada ou coisa d’outro mundo!” O dia estava amanhecendo e não pude conter nenhum deles! Fugiram! Foram todos embora a pé me deixando sozinho com o velho. Aliás, aqui prá nós, Eu também estava com um “baita” medo e, se não fosse da minha responsabilidade os equipamentos de trabalho, eu também teria fugido. O velho gaúcho percebendo a minha situação, olhou para mim e disse com aquele sotaque do sul: “Fique tranqüilo guri, que eu não te abandono! Aliás, eu carrego sempre comigo uma bala de prata! Sabe como é: um homem prevenido vale por dois e posso te assegurar que, um gaúcho da fronteira, que nem eu, não tem medo de nada! Só a falta de uma boa pinga!”
O dia amanheceu esplendoroso! Embora eu estivesse nervoso por causa do sucedido na noite anterior, a presença do velho me confortava. Mandei por
um dos peões um recado para o italiano e estava esperando uma resposta dele. Durante todo o dia fiquei matutando, procurando uma resposta racional pelo acontecido. Lembrei-me de um ditado espanhol que diz: “Não creio em bruxas, mas elas existem”. Pelo sim ou pelo não, tratei de ficar em alerta e coloquei várias fogueiras em volta do acampamento. O velho sorria tranqüilo e isso me agradava. Cheguei à conclusão que não estava com tanto medo e sim nervoso devido à covardia daquele bando de homens, que eu respeitava como valentes, mas que se tornaram mofinos na hora do “pega pra capar”. Sorri também para o velho, balançando a cabeça afirmativamente. O restante do dia foi normal, com a gente tocando e cantando umas modinhas de nossas terras. A noite chegou sombria, com nuvens escuras que encobriam a lua. Acendi as fogueiras e fiz uma chocolateira de café, enquanto o velho assava num espeto um bom pedaço de carne de sol. Ficamos proseando a noite toda e, quando o sono estava tomando conta de mim, o velho gaúcho tirou do seu bolso uma bala de prata, calibre 45 e colocou no tambor vazio de seu velho colt americano e me disse sorrindo: “podes dormir tranqüilo rapaz, que eu vou ficar de vigia. Se o danado aparecer, ele verá a luz dessa lua pela última vez. É só apertar o gatilho, pois eu nunca erro!”
Fui dormir junto de uma das fogueiras e como estava cansado, peguei logo no sono. Não sei por quanto tempo fiquei adormecido. Só me lembro que um vento frio me acordou, quando o fogo já estava quase se extinguindo. Já era de madrugada. Notei que o velho tinha ido dormir dentro do rancho. Tratei de me levantar, para colocar mais lenhas nas fogueiras quando, de repente, comecei a ouvir a zoada das machadadas no mato! A princípio o som era baixo e parecia que o lenhador estava distante. Porém, segundos depois a zoada foi aumentando, dando a impressão que o sinistro lenhador vinha derrubando madeiras, à medida que se aproximava. Seu moço! Meu compadre! O medo foi se apoderando de mim e fui acometido de um instantâneo desarranjo intestinal. Nessa hora, batendo o queixo de pavor, afastei-me da fogueira e agachei-me atrás de umas moitas, para dar evasão às minhas necessidades. Pensei em pedir ajuda, mas fiquei com vergonha de acordar o valente velho gaúcho e ele me ver naquela situação. Na medida em que, o som das machadadas aumentava, eu tratava de ficar bem quieto no meu canto. Nesse momento, eu comecei a sentir vergonha de mim mesmo e, de repente, um ódio foi aflorando em meu peito, me deixando morrendo de raiva daquele maldito lobisomem, que quase me fez cagar nas calças. Levantei-me de onde estava, respirei fundo e me recompus e, sorrateiramente, me dirigi para o rancho, na intenção de pegar o revolver do velho e abater aquele sacana que me aterrorizou.
Seu moço! O que eu vou contar prá vocês, parece mentira! Na medida em que eu me aproximava do rancho a zoada aumentava. Foi aí então, que eu percebi uma coisa, que me deixou de boca aberta. O som das machadadas parecia ser o ronco do velho! Sentei numa pedra para melhor observar aquele fenômeno e naquele momento tive certeza disso, apesar de que, a zoada parecia vir de diversos locais diferentes. A curiosidade tomou conta de mim e o medo
desapareceu completamente. No instante em que eu me dirigia para dentro do rancho, para ouvi melhor, o velho acorda e me pergunta, bocejando: “Tudo bem rapaz? O “coisa ruim” apareceu?” Respondi que não e ele balançou a cabeça com desdém, enquanto picava um naco fumo, para fazer o seu cigarro de palha. Fiquei sem saber, o que realmente aconteceu, pois o velho não voltou a dormir. O dia estava amanhecendo e tratei de coar um forte café, para esquentar o frio, que estava fazendo. Nenhum de nós dois dormiu novamente e fiquei pensando se o som das machadadas, durantes aquelas noites, fosse realmente o ronco do velho! Aquela incerteza me aborrecia muito. Porém, de uma coisa eu tinha certeza: nunca mais na vida eu teria medo do sobrenatural e, diante dessa decisão, toquei minha vida prá frente.
O dia que se seguiu foi tranqüilo, com o velho contando suas venturas e desventuras, ao sabor de uma aguardente destilada do bagaço de uvas. Tomei também uns goles e fiquei tocando umas modinhas em seu fole de oito baixos, enquanto a gente esperava notícias da cidade. Às quatro horas da tarde chegou o caminhão com o italiano apavorado, sabendo dos funestos acontecimentos. Deu pressa na gente para colocar todo o equipamento no carro, pois queria dar o fora dali antes do anoitecer. Não estava disposto a se arriscar por nada e quando chegasse à noite, queria está muito longe daquele lugar. O dono da terra se quisesse construir sua fazenda, procurasse outro, pois ele não queria nada com assombração. O velho gaúcho lhe assegurou, que o lobisomem só não apareceu na última noite, porque sabia que ele tinha uma bala de prata. Ele disse às gargalhadas: “O bicho é mau, mas não é besta!” Às cinco horas em ponto a gente já estava em cima do caminhão, viajando com o ordenado de um mês nos bolsos. Só eu e o velho recebemos, pois não desertamos do nosso trabalho. Ao chegar à cidade de São Paulo, me despedi dele com um forte abraço e ele me disse: “Foi um prazer ter como companheiro de trabalho, um homem valente como ti, Manoel!” Sorri para ele e lhe disse o mesmo. Logo após, segui em direção da pensão, em que eu ia me hospedar, pensando no assunto e até hoje eu fico encafifado, pois não tenho convicção se era realmente um lobisomem ou o ronco do velho.
Uma semana depois encontrei os meus amigos e conterrâneos e lhes contei o sucedido. Chico ficou por algum tempo pensativo. Logo depois, cofiando a sua barba grisalha, balançou a cabeça e disse: “Sei não! Pode ser e pode não ser!” Tião me afirmou, com toda a certeza, que se tratava de um verdadeiro lobisomem. Contei isso pra pouca gente e, como agora estamos proseando, estou contando isso pra vocês. Acredita quem quiser. Agora vamos tomar um cafezinho e comer esta carne de sol, assadinha na hora, enquanto o meu compadre Zé do Barulho, conta pra gente de como a caipora lhe cercou no mato e lhe pediu um naco de fumo.(Segundo capítulo do livro não publicado “As Aventuras de Um Catingueiro”. J. B. Pessoa.)

Nenhum comentário:

Postar um comentário