Por Carlos Eden Meira
Aquilo
era uma rotina. Chegava do trabalho as dezoito e trinta, jantava uma aborrecida
sopa de verduras seguida de um café ousadamente forte e fervente, o qual
insistia em ser bebido num pequeno quarto
onde havia uma velha poltrona e
uma antiga estante de madeira, caoticamente abarrotada de livros. Havia ali,
algumas obras clássicas como “A Divina Comédia” de Dante Alighieri, “Macbeth”
de William Shakespeare, uma biografia de Dostoievski encadernada em couro, com
título em alto-relevo dourado; coleções de Machado de Assis e outros mestres da
literatura nacional e estrangeira, tudo isto promiscuamente convivendo com
livros e revistas medíocres, ou mesmo de péssima qualidade literária. Nada ali
era arrumado pela ordem de estilos, autores, temas abordados, ou qualquer
critério que orientasse possíveis leitores.
Tudo
começou a mudar numa noite, após o jantar, quando antes de pegar algum livro na
estante, ligou o rádio que tocava uma dessas aberrações, que insistem em chamar
de música. Distraidamente, sem prestar atenção ao que o rádio tocava, folheava
um volume qualquer quando notou na estante à sua frente, uma biografia de
Ludwig Van Beethoven, cujo retrato na capa olhava para ele com uma expressão de
ódio, como se fosse saltar da estante, apanhar o rádio e arrebentá-lo
atirando-o ao chão, o que talvez, não fosse uma má idéia. Teve a impressão, (ou
foi a certeza?) de que o retrato do grande compositor se mexia, dizendo-lhe
alguns desaforos em alemão, idioma que sempre
lhe pareceu o mais apropriado para dizer
desaforos. Durante algum tempo, pensou até em fazer um curso de línguas, só
para berrar alguns desaforos em alemão, quando alguém o aborrecesse.
Naquele
momento, nem sequer lhe passou pela cabeça a idéia de mudar de estação ou
desligar o coitado do rádio, que era obrigado a transmitir aquela enxurrada de
lixo sonoro, materializando-se e derramando-se aos borbotões por todo o
ambiente, subindo pelas paredes, penetrando em todas as frestas e aberturas.
Quando no programa radiofônico, um pretensioso comentarista interferiu sem um
mínimo senso crítico para fazer comentários, maltratando impiedosamente a
linguagem, dois volumes na estante, um de Machado de Assis e outro de Eça de
Queiroz estremeceram-se, e caíram ruidosamente da prateleira. Pareceu-lhe ter
visto o vulto de um dicionário de Aurélio tentando suicidar-se, querendo pular
da janela aberta do pequeno quarto. Numa das prateleiras, antigos discos de
vinil, clássicos da música popular e erudita, agitaram-se nervosamente
começando a voar por todos os lados, tentando desesperadamente atingir o rádio,
e também, seu perplexo e boquiaberto ouvinte. No dia seguinte, tomou a séria
decisão de colocar a estante em ordem e ouvir rádio criteriosamente, com mais
atenção.
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