J. B. Pessoa
Uma das vantagens de Jequié é a
sua localização. Centrada numa zona intermediaria entre a Mata e a Caatinga, e
de uma espécie de vegetação, semelhante ao Cerrado, denominada de Mata Cipó, a
cidade sofre e exerce influências econômicas e culturais nas demais cidades da
sua vizinhança. Situada no Planalto Baiano, na depressão relativa do vale do
Rio das Contas, tem suas terras mais baixas do que as cidades vizinhas. As
exceções ficam por conta das ribeirinhas, que seguem a corrente do rio, sendo
por isso o seu clima mais quente que as demais.
Todas as cidades têm os seus
próprios feriados e dias santos. É comum as cidades comemorar suas datas
importantes com muita festança. Em um raio, que não ultrapassa os cem
quilômetros, ficam próximas de Jequié, a sudeste do município, as progressistas
cidades de Jitaúna, Itají e Ipiaú. Mais além, ultrapassando os cem quilômetros,
Itabuna e Ilhéus. Ao Norte estão Jaquaquara, Itiruçu e Maracás. Ao sul, um
pouco mais distante, seguindo a rodovia BR-116, estão situadas as cidades de
Poções, Planalto e Vitoria da Conquista.
Cientes dessas informações, a
rapaziada jequieense sabe do dia e hora dos acontecimentos políticos, sociais e
religiosos de seus vizinhos e como tirar proveito de seus festejos. Está sempre
acontecendo alguma festa em algum lugar, como um caruru, ou aniversário de
alguém influente. Nessas ocasiões, a pandegada não perde a oportunidade e
partem para essas cidades que, as mais próximas, ficam em uma distância, mais
ou menos, como do centro de uma capital para seus bairros periféricos.
Em uma bela noite de verão, em
que a região era presenteada com o clarão esplendoroso de uma lua prateada, a
qual não tinha sido ainda, maculada pelas hordas do progresso, um grupo de
jovens estudantes pretendia ir a uma dessas cidades. Reunidos na calçada do
Cine Teatro Jequié, esses moços planejavam ir a uma festança numa pequena
cidade da região, de altitude muito elevada. Era uma comemoração tradicional,
com novenas e quermesses, que finalizaria com um “grito de carnaval”, em seu
clube social. Essa turma era liderada por um jovem de alegria contagiante
chamado Raimundo Meira. Ele era o único que portava um convite. Com esse
ingresso, que estava em nome de seu pai, pretendia penetrar no baile, levando
seus três amigos.
- Como poderemos passar por
irmãos, se somos tão diferentes um do outro! – Disse um jovem alto, chamado
Lauro.
- Você é louro, eu sou moreno,
Raimundo é branquelo! Isso sem contar que o nosso amigo Eugênio é mulato –
observou José Roberto, um jovem extrovertido, que passou três meses no Rio de
Janeiro e voltou com o sotaque característico da Cidade Maravilhosa, ganhando,
com isso, o apedido de Zé Carioca.
- De noite todos os gatos são
pardos e o porteiro do clube é meu camarada! – Afirmou Raimundo, que era o mais
animado da turma.
Decididos a participarem
daquela aventura, os jovens entraram em um jipe sem capota, trajando roupas
típicas de verão e seguiram pela rodovia BR-116, cantando as novas músicas,
recém-lançadas no rádio, que faria sucesso no próximo carnaval. À medida que o
carro subia a estrada, saindo do vale, a temperatura ia caindo. Quando chegaram
ao planalto, a lua sumiu e começou a cair um sereno típico da região. Embora
fosse verão, a temperatura caiu e os rapazes começaram a sentir frio. O carro
seguiu pela estrada adentro, atravessando o município de Jaguarquara, indo em
direção a uma cidadezinha pitoresca, que ficava numa altitude superior às
demais. Lá chegando, os jovens foram diretos para a praça principal da cidade,
onde ficava o clube, parando no primeiro bar que encontraram.
Com as roupas enxovalhadas, os
rapazes entraram no bar, morrendo de frio! Zé Carioca chateado com tudo aquilo,
resolveu esnobar a cidade, dizendo com desdém:
- Nessa porra cai neve?!
- Dizem os mais antigos, que na
madrugada de um inverno, há muito tempo, em uma serra perto aqui, a temperatura
chegou ao zero grau e caíram flocos de neve, formando uma finíssima camada, que
derreteu logo ao amanhecer! – Disse Raimundo, o qual conhecia muito bem aquela
cidade.
- Se minha mãe souber que
estive num lugar desses, me bate quando eu chegar em casa! - Disse com desdém
Zé Carioca, o qual nasceu e foi criado em um medíocre povoado na Zona da Mata
que, nem de longe, podia ser comparado àquela pitoresca cidadezinha.
- Cala a boca seu sacana! Quer
morrer?!... O pessoal daqui é gente boa, mas é muito cismado. Se não for com a
cara de alguém, é encrenca certa! – Observou Raimundo, aborrecido com a ofensa
do amigo.
- Eu soube que um cara de
Salvador foi dar um de gostoso aqui, apanhou que nem Judas em sábado de
aleluia! – Disse Eugênio sorrindo, que também conhecia a fama da cidade.
Os quatros rapazes se
acomodaram em uma mesa situada perto da porta, que dava uma visão privilegiada
da praça. Naquele momento, o lugar estava repleto de pessoas. A maioria delas
era composta por jovens adolescentes, que flertavam puerilmente naquele
ambiente. Às 22 horas a neblina cessou, e um vento frio começou a soprar,
fazendo os rapazes, tremer, e ranger os dentes. Lauro chamou o garçom e pediu
quatro doses de uísque seco e todos tomaram de um trago só. A turma permaneceu
naquele bar, proseando e consumindo o malte nacional por um bom tempo. De
repente Eugênio, que estava absorto, olhando para o povo na praça, em trajes de
verão, disse admirado:
- O pessoal daqui parece que
não sente frio!
- Eles sentem sim! – Comentou
sorrindo Zé Carioca, que acrescentou às gargalhadas.
– É que eles são tão tabaréus
que não percebem!
Lauro e Eugênio riram a valer,
diante do olhar aborrecido do garçom. Bastante chateado com a imprudência de
seus amigos, Raimundo disse irritado:
- Bando de otários! Aqui, quem
quiser se dar bem, tem que fazer primeiro, amizade com a turma da cidade! A
começar pelos garçons, donos de bares, padres, coroinhas de igrejas, veados!...
A puta que pariu vocês...
- Não se aborreça meu camarada,
é apenas uma brincadeira! – observou Lauro, um pouco preocupado com o mau humor
do amigo.
- Deixa Raimundo pra lá rapaz,
que ele está bêbado! O negócio é ir atrás das meninas! – Gracejou Zé Carioca
que, olhando para a praça, acrescentou a sorrir:
- Rapaz!...Isso aqui é o ouro
da Babilônia!
Os rapazes saíram do bar e
foram dar um passeio pela praça. Raimundo estava arrependido por ter convidado
Zé Carioca. Naquele momento, o rapaz estava embriagado e assediava as meninas
com aquele sotaque forçado de carioca, que nasceu em qualquer lugar do mundo,
menos no Rio de Janeiro. Moreno, de olhos verdes, não era bonito. Fazia algum
sucesso com as garotas inexperientes, devido à sua conduta extrovertida. Lauro,
apesar de bonitão, era muito tímido e bastante brando com as meninas, Eugênio
era um mulato claro, muito simpático, agradava sempre as meninas. Raimundo era
o intelectual da turma. Branco, de cabelos negros, elegante e educado; embora
não fosse rico, descendia de uma aristocracia importante na Bahia. Fazia mais o
tipo cavalheiro e, por isso mesmo, estava preocupado com a embriaguez do
camarada.
De repente no meio da multidão
surge um grande amigo da turma, Era Carlão, um moreno alto de cabelos compridos
que, sentido muito frio estava envolto em um cobertor de dormir. Estava com uma
garrafa de conhaque e de mãos dadas a uma garota muito bonita, que o
acompanhava.
- Puxa turma!... Vocês por
aqui?!... Que barato! – Exclamou Carlão com uma alegria esfuziante.
- A gente veio para o grito de
carnaval!... E o pessoal daqui é animado mesmo! – Disse Raimundo, alegre com a
repentina aparição do amigo.
- Cara!...Que cobertor e
esse?!... Tu tá parecendo índio de filme americano! – Observou Zé Carioca,
caçoando do amigo.
Carlão, rindo bastante da sua
situação, retrucou:
- Meu camarada!... Cheguei aqui
às duas horas da tarde com um sol gostoso. Vim ver Carminha e conhecer os pais
dela! Acostumado com o calor de Jequié, vesti apenas esta camiseta. O frio
chegou e não tinha nenhum blusão que desse em mim, Dona Alice, mãe de Carminha,
esta linda menina, minha namorada, me deu esse cobertor de lã! Daqui a pouco,
quando o baile começar, deixo o cobertor em casa e entro no quentinho do clube
abraçado à minha mina.
Rapaz!...Tá um frio de lascar e
o pessoal daqui não estar nem aí! – disse Eugênio admirado com tudo aquilo.
- A turma daqui já esta
acostumada! Vocês precisam nos visitar no São João! - Falou a moça rindo dos
rapazes.
- Só se eu for maluco! Passar
frio na roça é coisa de otário! Se fosse uma cidade que nem São Paulo, tudo
bem! Mas Aqui?! - Disse em tom de zombaria Zé Carioca, que continuava
exagerando em suas piadas.
Fulo de raiva com a falta de
educação e imprudência do companheiro, Raimundo retrucou:
- Desculpe o nosso amigo,
mocinha! Esse capiau aqui tira uma de carioca, mas é mateiro de um lugar onde o
Judas perdeu as botas e está bêbado de dá dó!
A moça sorriu compreensiva e
não se importou com aquilo. Retirou-se com o seu namorado, que prometeu
encontrar a turma mais tarde. Os rapazes seguiram em direção do clube, que
naquele momento estava repleto de gente. Estava terminando uma comemoração
política e não havia nenhum porteiro no momento. O salão estava decorado com
motivos de carnaval. Naquela hora uma meninada, menor de idade, era a maioria e
fazia um alarido que irritava bastante o Zé Carioca. A festa estava por começar
e só precisava da autorização do juiz de menores. A banda “Oliveira e seu
Conjunto” já se encontravam no palco e os músicos faziam os últimos ajustes em
seus instrumentos. Um senhor chegou ao microfone e pediu a imediata retirada
dos menores do recinto. A turma estava encantada com o número de garotas
bonitas naquele ambiente e Zé Carioca esperava ansioso pelo inicio do baile.
Como o bando de moleques se
recusava a sair, o juiz ordenou aos adultos presentes, que retirasse à força os
menores de quinze anos. A molecada resistiu de todas as maneiras, perturbando a
todos com a sua implicância. Uns diziam que eram pequenos, mas eram velhos e
outros ficavam na ponta dos pés tentando aparentar altura. Todos foram sendo
postos para fora pelos adultos, com as suas orelhas sendo puxadas e tomando
cascudos. Zé Carioca foi o que mais atuou nessa empreitada, diante da
reprovação de seus amigos. De repente ele, bastante bêbado, agarra um individuo
de paletó e gravata, bigodinho fino e cabelos penteados à brilhantina, bastante
pequeno e tenta jogá-lo fora do salão. O baixinho vira para ele, bastante
indignado e grita a seguir:
- Me respeite rapaz, que eu sou
homem!
Zé Carioca olhou incrédulo para
o baixinho e disse:
- Quem já viu homem desse
tamanho, cabra? – Dito isso, pegou o baixinho e deu uns cascudos. Segurando com
uma mão a gola atrás do paletó e com a outra o cinto atrás das calças, levou o
baixinho até a porta do clube, atirando o sujeito à rua, com um pontapé na
bunda.
Nesse momento, Carlão correu
assustado e falou rápido para a turma, ainda atônita com o acontecido:
- Caiam fora daqui e leve esse
porra com vocês!... Aquele baixinho é, simplesmente, o presidente deste clube e
o homem mais rico da região! E não é só isso! São seus irmãos o prefeito da
cidade, o juiz, o promotor, dois médicos e o delegado de policia! - Dito isso,
caiu fora dali para não se comprometer. Raimundo e a turma saíram correndo do
clube, levando o Zé Carioca que, bêbado, não entendia nada. A sorte deles foi
que naquele momento, eles encontraram um cidadão, que estava levando um
carregamento de feijão para Jequié. Jogaram o sujeito em cima do caminhão e
pediram que o entregasse em casa. O cidadão era amigo do pai de Zé Carioca e
prometeu deixar o bêbado em sua casa. Zé Carioca, deitado no meio dos sacos de
feijão, foi roncando a viagem toda. A turma seguiu para o clube, que naquele
instante começava a folia. O baixinho, rodeado de policiais, procurava o
atrevido que o havia injuriado. Raimundo virou para turma e perguntou, fingindo
importância:
- Por acaso vocês conhecem o
sujeito em questão?
- Nunca o vi mais gordo! –
Respondeu Lauro.
- Nem eu! - Completou Eugênio.
Um bêbado olhou para a turma e
disse com a voz enrolada em alto e bom som, sendo ouvido por todos os
presentes:
- Eu conheço!... O sacana é de
Vitória da Conquista!
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