J. B. Pessoa
Capítulo - 29 do livro "Guris e Gibis"
Naquela tarde de Sexta-feira Santa, O Sr. Miguel Pereira levou a
sua família, para assistir a um filme sobre a vida de Cristo. Pegou a segunda
sessão da matinê, a qual terminou às cinco horas da tarde, no momento em que o
Padre Climério dava início a procissão do Senhor Morto. Johnny saiu do cinema
acompanhado de se seus pais que, juntamente com Maria de Fátima, acabavam de
assistir a um celebrizado filme intitulado de Nascimento, Paixão e Morte de
Nosso Senhor Jesus Cristo. O Senhor Miguel quis conhecer essa afamada produção
de 1902, que todos os anos o Cine Bonfim reapresentava sobre a vida de Jesus. A
película estava bastante estragada, suscitando comentários hilários da platéia
e de um jocoso cidadão, afirmando que o filme foi feito na época daqueles acontecimentos
e que aquele era o Cristo verdadeiro. Dona Nonnita saiu do cinema,
impressionada com a crença de alguns expectadores, que se ajoelharam em frente
da tela, rezando, clamando por Deus e bradando aleluias. Seu Miguel comentou
para a esposa, que havia na cidade uma estória engraçada sobre aquele filme. Em
certa ocasião, o dono do cinema se atrapalhou, emendando parte de outro filme
na película daquele. O resultado foi burlesco. Na cena em que os saldados
surravam o Cristo, apareceu o cowboy Buck Jones distribuindo tiros a valer. O
episódio gerou várias anedotas na época e o comentário dos zombeteiros aos
crentes ingênuos era que, o mocinho atirou para salvar Jesus dos soldados
bandidos.
Seguidos pelos dois filhos, o casal se apressou para entrar na procissão,
acompanhando o rito sagrado, juntamente com outras pessoas. Johnny permaneceu
pensativo por alguns instantes, avaliando a simplicidade das pessoas de crer em
certas informações esdrúxulas. Ele próprio se sentiu uma vítima dos pudores de
uma pedagogia esquisita, a qual o deixou receoso, quanto às verdades da vida. O
caso da cegonha ainda o deixava chateado e ele sentia vergonha de sua
estupidez, perante aquela aposta na briga de galos.
A procissão seguia em seu cortejo fúnebre, levando a imagem do Senhor
Morto em uma espécie de ataúde, que era conduzida por um grupo de pessoas,
entre elas, as mais importantes autoridades do município. A banda musical
Amantes da Lira escoltava o préstito religioso, tocando músicas sacras, além
dos hinos católicos, que eram cantados pelas pessoas que seguiam aquela
comitiva. Durante o andamento da procissão, ocasionava certas paradas, em que
aparecia uma jovem com trajes da época, caracterizando uma personagem da Via
Sacra, chamada Verônica. Ela desenrolava um pano, no qual aparecia à efígie do
Cristo, enquanto entoava um canto de profunda comoção, simbolizando a dor da
Paixão.
Johnny seguia absorto em seus pensamentos, quando avistou do outro
lado da fila, um pouco mais à frente, os pais de Luis Augusto. Chamou a atenção
dos seus, que foram ao encontro deles, seguindo juntos pela procissão. O garoto
perguntou pelo primo e foi informado por sua Tia Amélia, que ele se encontrava
um pouco atrás, junto à meninada da Cruzada.
Johnny se despediu dos seus familiares e ficou esperando pelos
garotos que, na retaguarda da procissão, vinham todos juntos em completo
silêncio. Encontrou Orlando,
Luis Augusto e Eduardo na companhia de Berenice e Eva Marli. O
Garoto imediatamente percebeu que Orlando estava por perto para marcar a sua presença
e melindrar Eduardo, que solícito com as meninas, dava ares de cavalheiro.
Johnny saudou a todos com discrição, pois os jovens estavam capitaneados por
Dona Bebê e Dona Nenê, além da irredutível Dona Amália Ferreira. Berenice
sorriu para ele, emitindo um olhar de carinho e conivência, sendo reverenciado
pelo garoto com uma alegria moderada. Johnny seguiu na companhia da meninada,
um pouco afastado das garotas, observando o apuro das pessoas ao seu redor, em
seus trajes elegantes. Os homens em ternos completos e as senhoras com seus
vestidos de luxo, usando mantilhas escuras e terço nas mãos, numa austeridade
inerente ao dia. Os rapazes e as moças vestiam roupas mais joviais, apesar
delas portarem mantilhas brancas de véus em suas cabeças.
A procissão entrou pela avenida, seguindo o mesmo percurso que o
corso fazia no carnaval. Ao atingir a Praça Ruy Barbosa, Johnny notou que ela
estava inteiramente vazia, com os bares e confeitarias fechados. O parque
infantil e a pista de patins completamente a ermos, sem a costumeira algazarra
da meninada. Lembrou-se então da advertência do padre no sermão da missa
matinal, que brincar na sesta feira da paixão era um grande pecado. Orlando
aproximou-se de Johnny e fingindo estar entediado com tudo aquilo, se queixou:
- Esse é o dia mais chato do ano e não vejo à hora dessa procissão
acabar!
- Ué!... Então por que você está acompanhando? - perguntou Johnny,
fingindo surpresa, adivinhando a óbvia resposta.
- O pai de Berenice pediu pra eu tomar conta dela!
- Numa procissão?!
- Claro!... Aqui pra nós, que eu não quero saber de fuxico! O pai
dela não quer que a filha, fique sendo falada em boca de “matildes”!
- Você não acha que ela está em segurança, acompanhada dos amigos
e das senhoras de igreja?
Orlando balançou a cabeça negativamente e, fingindo cumplicidade,
chamou Johnny à parte, lhe cochichando ao ouvido:
- Olha!... Vou lhe contar um segredo, que fica entre a gente! Ela
mesma pediu para que eu ficasse por perto, pois ela detesta Eduardo! O sacana
diz pra todo mundo que vai namorar a garota!
- Ah é?... E quanto a Luis Augusto?
- Bom!... Desse camarada ela gosta como amigo. Afinal ele é uma
pessoa fina e educada; mas nenhum deles tem a menor chance de namorar a menina.
Johnny bateu no ombro de Orlando e fingindo concordar com o rapaz,
disse caçoando:
- Eu sei disso! Eva Marli me disse que os pais dela não querem que
ela namore antes dos quinze anos!´
Orlando sorriu satisfeito e disse com desprezo:
- E isso aí rapaz! Só que o bocó do Eduardo fica babando pela
menina e não enxerga que ela não é para o bico dele!
- Então pára de se preocupar de deixa as coisas seguirem o seu
rumo! – Aconselhou Johnny, cansado de uma conversa sem sentido como aquela.
- É isso irmãozinho! Preocupar-me pra que? - Avaliou Orlando, mais
animado com a situação.
Johnny sabia que Orlando estava mentindo. Não só pela conversa que
ele teve com Berenice, mas pelo modo em que a turma foi tratada, quando
conheceu as meninas nas tertúlias daquele domingo. Além disso, o garoto notou
que as famílias de toda aquela juventude, estavam por perto, acompanhando o
evento e viu o Senhor Spencer, que era católico romano, seguindo com Dona
Norma, juntos dos pais de Eva Marli. A única coisa verdadeira na sua estória
era que, o pai de Berenice tinha realmente lhe pedido para acompanhar a filha
nas matinês de domingo, achando que, se o famigerado pegador de meninos, acaso
existisse, fosse algum tarado perigoso. Depois de ele ter sido convencido pelo
delegado Quixadá, que tudo aquilo era invenção do povo, seu receio se esvaiu,
deixando-o mais tranquilo. Entretanto Orlando, depois de desmascarado em sua
mentira, dizia para todos que era o segurança contratado para proteger a
garota.
Era grande o número de pessoas, que acompanhavam aquele cortejo
religioso pelas ruas do centro da cidade. Tinha superado os anos anteriores e,
por isso, o seu trajeto foi ampliado, entrando em outras ruas centrais, para
sair na avenida principal e terminar na Praça Castro Alves em frente da igreja
matriz.
Ladeada pelos dois pretendentes, Berenice ia à frente, usando com
elegância um amplo vestido de seda, de cor azulada, cujo modelo seguia a
tendência parisiense do pós-guerra. Sem poder dar atenção a Johnny, que a
seguia de perto, ela apelou discretamente a Eva Marli que, de maneira sutil,
ganhasse a atenção de Luis e Eduardo, para que ela dedicasse um pouco de tempo
ao seu belo garoto. A amiga sorriu maliciosamente e chamando a atenção dos dois
meninos, perguntou:
- Qual dos dois cavalheiros poderá oferecer dois sacos de pipocas
a duas garotas famintas?
- Pipocas, agora?!... Receio que no momento não encontraremos
nenhuma! – Advertiu Eduardo, surpreso com o pedido.
Aproveitando a oportunidade de pirraçar os garotos, Orlando
esclareceu:
-Encontra sim senhor!... Passamos pelo carrinho do Seu Procópio,
há poucos instantes, na esquina da Rua Mangabeira com o Beco dos Cochichos.
Eva Marli olhou para os dois, dizendo com naturalidade:
- Puxa, que bom! Luis pega um para mim e Eduardo para Berenice!
Os garotos entreolharam-se e foram comprar as pipocas, pois não
queriam perder espaço um para o outro. Querendo aborrecer ainda mais os
meninos, Orlando pediu com um sorriso jocoso no rosto, fingindo fineza:
- Se não for abuso da minha parte, traga um saquinho pra mim
também!
Os dois meninos partiram apressados para satisfazerem as garotas.
A procissão percorria naquele momento a Praça da Bandeira, indo em direção à
Rua Barbosa de Souza, para sair na avenida. Eduardo e Luís entraram no Beco dos
Cochichos que começava na praça, pois era um bom atalho que terminava na
esquina, onde ficava o ponto do Seu Procópio. Durante o trajeto, nenhum dos
dois fez qualquer comentário a respeito daquela disputa, limitando a discorrer
sobre as amenidades corriqueiras. Eles
sabiam que eram rivais e ambos se respeitavam, confiando na sorte
para decidir aquela questão. Nenhum deles tinha feito, ainda, qualquer proposta
à menina, limitando seus flertes a galanteios concisos, esperando uma
oportunidade adequada.
Enquanto Eva Marli distraia Orlando, Berenice aproximou-se de
Johnny e, segurando a sua mão, permaneceu naquele encanto durante alguns
segundos. O garoto, emocionado com o gesto da menina, osculou ternamente o seu
rosto, seguindo juntos em completo silêncio.
A vanguarda da procissão já tinha atingido a avenida, quando os
garotos voltaram com vários saquinhos de pipoca nas mãos. A pequena balbúrdia
formada na distribuição chamou a atenção das beatas, que ralharam com a
meninada, pedindo silêncio. Johnny continuou ao lado de Berenice, ladeado pelos
dois rivais que, a todo instante se insinuavam à menina. Sentiu vontade de rir
ao ver aquela disputa, que beirava ao ridículo. Dois marmanjos assediando uma
garota, os quais eram importunados por outro. Quando tentou se esquivar daquela
situação, para deixar seu primo mais a vontade, foi detida por Berenice, que
segurou a sua mão, perguntando:
- Oh, Johnny! Você já vai embora?
- Ainda não! Estou com sede e vou tomar um pouco d’água!
- Posso ir consigo?
- Claro que sim!
Berenice pediu licença aos meninos e seguiu com Johnny, deixando
Eduardo enciumado, que resmungou contrariado:
- “Debaixo desse angu tem caroço!”
- O que você quer dizer com isso? Perguntou Luis, curioso com a
colocação do rapaz.
- Nada não! Eu é que estou pensando alto!
Desconfiado de que alguma coisa não ia bem, Orlando sussurrou ao
ouvido de Luis, para por um pouco de discórdia entre os três amigos.
- Eu acho que aqueles dois estão amigos demais para o meu gosto!
- Johnny e Berenice?! – Perguntou Luis Augusto, perplexo com a
novidade.
Ouvindo a conversa dos meninos, Eva Marli cogitou na oportunidade
de ajudar Berenice, certa de que, se naturalmente a verdade viesse à tona, não
causaria nenhum transtorno no namoro da amiga. Numa decisão rápida e concisa,
resolveu jogar com os meninos e, fingindo surpresa com tudo aquilo, perguntou
subitamente:
- Vocês também acham isso?
- Acham o que? – Perguntou Eduardo com curiosidade.
- Ora essa! Que existe um romance entre Johnny e Berenice.
Luis Augusto, decepcionado com a novidade, pergunta para a garota:
- Você está sabendo de alguma coisa?
- Eu não estou sabendo de nada! – Respondeu Eva, que finalizou:
- No domingo passado, quando a gente estava na confeitaria, eu
notei algo diferente, pela maneira como os dois se olhavam. Aí perguntei se
eles estavam namorando e ela me respondeu com evasivas!
- Pois eu estou desconfiado disso há muito tempo. – Disse Eduardo,
com uma ponta de tristeza na voz, que completou:
- Berenice parece que gosta de Johnny! Eu notei isso naquela manhã
de domingo, quando ela esteve no final do nosso torneio. Acho que eles só não
estão namorando, porque o garoto é tímido demais para isso.
Orlando ouvindo tudo aquilo, disse com desdém:
- Vocês estão sonhando! Berenice não está interessada em ninguém!
Ela trata todo mundo com gentilezas, porque é uma menina de ouro. Acontece que
tem muito otário por aí, invocado com a garota, que não se manca e troca as
bolas.
- Bom isso é verdade! Talvez seja apenas amizade. – adiantou Eva
Marli.
- Vamos esperar pra ver! O que tiver de ser será. – Concluiu Luis
Augusto.
Berenice acompanhava Johnny em silêncio, que permaneceu calado
durante todo o percurso, sem emitir qualquer palavra. Preocupada com um possível
ciúme, parou e segurou a mão do garoto, perguntando com doçura:
- Querido, você está zangado comigo?
- Zangado?!... Com o que meu anjo?
- Bom: se eu visse você sendo cortejado por duas garotas eu
ficaria com ciúmes!
- Eu estou com um pouco enciumado, sim! - Disse o garoto, sabendo
que as meninas gostam de provocar ciúmes, acreditando que esse lamentável
sentimento, seja uma prova de amor. Olhando ternamente para a menina, enquanto
acariciava os seus cabelos, disse-lhe docemente:
Porém, não estou zangado! Afinal os meninos não estão sabendo da
gente e você está apenas sendo gentil.
A garota sorriu feliz e os dois de mãos dadas foram até o Bar
Vermelho, que era o único estabelecimento aberto naquele final de tarde. No bar
funcionava ao mesmo tempo, uma mercearia e confeitaria. Naquele dia abriu pela
tarde, servindo apenas as merendas tradicionais, acompanhadas de refrigerantes
e caldo de cana. Eles se acomodaram numa mesa e pediram uma coca cola, bebendo
juntos na mesma garrafa com dois canudinhos, imitando um casal de adolescentes
que tinham visto em um filme. Ficaram por vários minutos, conversando em
completo deleite e, ao perceberem que a procissão, já havia chegado ao seu
final, saíram do bar apressados, chegando à praça da matriz, quando o padre
encerrava o evento com um sermão sobre a vida do Salvador.
Eva Marli, quando viu os dois chegando, perguntou curiosa:
- Ué, onde vocês estavam?
- Paramos no Bar Vermelho para tomar uma coca e ficamos
conversando um pouco - Respondeu a garota com naturalidade.
Naquele momento Luis Augusto se deu conta, que havia sido
descuidado em relação ao primo. Ficou entretido com Berenice, que mal o
cumprimentou. Enquanto Berenice conversava com Eva Marli, Ele aproximou-se do
garoto e, apertando a sua mão, disse com gentileza:
- Puxa Johnny, a gente conversou pouco hoje! Cadê a turma da
Siqueira Campos?
O garoto saudou o primo com alegria e, caçoando de seus amigos,
respondeu sorrindo:
- Os protestantes estão nas suas igrejas e os hereges foram tomar
banho no rio!
- Os Hereges?! – Perguntou Luis, admirado com a acepção da
palavra.
- Edgar, Mipai, Tõe Porcino e os restos dos biribanos do Joaquim
Romão! - Disse Eduardo, numa grande gargalhada, confirmando a gozação do
garoto.
Orlando, que estava por perto, desabafou a sua contrariedade:
- Eles é que estão certos! Eu só estou aqui porque minha mãe está
de marcação comigo! Eu não acredito que seja pecado tomar banho de rio num dia
como hoje!
- A gente também não! – disse Eduardo, falando pelos amigos, que
finalizou:
- Mas não vejo nada demais, em acatar uma tradição religiosa!
Naquele momento o padre encerrava a solenidade, convidando os
fiéis para a cerimônia do beija pés, que iniciava a partir daquela hora.
Berenice se despediu dos meninos e foi ao encontro de seus pais, na companhia
de Orlando e Eva Marli. A turma marcou um encontro para o dia seguinte, que
seria o sábado de aleluia, em um local onde haveria um “queima de Judas”, na
Praça Ruy Barbosa.
Eduardo subiu para sua rua que ficava por perto, no alto da
colina, conhecida como o Morro do Cruzeiro. Johnny e Luís foram ao encontro dos
seus pais, que esperavam por eles na escadaria da igreja, conversando com
outros cidadãos. As duas famílias tinham combinado um jantar, numa ceia
preparada por Dona Amélia, com as iguarias da cozinha baiana. Os primos irmãos
Gustavo e Miguel estavam famintos, pois tinham o hábito de jejuarem na
Sexta-feira da Paixão. Eles seguiram juntos, a pé, no instante em que, a sirene
do Cine Bonfim anunciava mais uma sessão do seu famoso filme.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirAdorei! Retratou vários locais e costumes da cidade!
ResponderExcluirEsse conto acima è simplesmente brilhante! Eu adoro o periodo,os personagens, a inocência da época,o modus vivendi daquela decada,o romantismo,enfim tudo. Esse livro, de João Batista Pessoa, Guris & Gíbis precisa ser publicado urgentemente, senão essa historia social de uma época ainda viva nas memória dos coadjuvantes vai perder o bonde!
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