domingo, 8 de março de 2020

Um dia de glória.


J. B. Pessoa

Capítulo - 24 do livro "Guris e Gibis"

Aconteceu em um notável domingo, sob a luz magnífica do belo sol jequieense. Naquela manhã, Johnny acordou bem cedo, tomou um estimulante banho frio e, após o desjejum, foi com a sua família à igreja matriz da cidade, para o culto da primeira missa do dia.
Terminando a cerimônia religiosa, o garoto pediu a permissão dos pais para ficar conversando com seus colegas de escola e ir à matinal do cine Bonfim, pois pretendia assistir a um festival de desenhos. Depois do consentimento da família, ele foi encontrar os garotos, que estavam sentados na escadaria da igreja, envolvidos em uma excitante conversa. Ficou sabendo por eles, que a estréia da peça, a qual Berenice era a estrela principal, ia ser encenada naquela mesma manhã. Ficou ciente, também, de que, a matinal do cine Bonfim, além dos desenhos, iria ser exibido um filme do Gordo e o Magro. Contudo, o que deixou Johnny mais deslumbrado foi a noticia de que, o Cine Teatro Jequié iria apresentar em sua matinal, o filme “Alice no País da Maravilhas”. Johnny tinha lido a historia em quadrinhos, mas nunca teve a oportunidade de ver o famoso filme de Walt Disney. O garoto ficou bastante indeciso, sem saber o que fazer. Adorava Berenice e queria vê-la no palco, mas era totalmente fascinado por desenhos animados e gostava muito das comédias do cinema mudo.
O sol primaveril daquela manhã de abril, típico de um outono nordestino, anunciava um dia majestoso. O garoto sentiu falta do seu primo, que tinha viajado com os pais para Salvador. Despediu-se dos amigos e foi ver os cartazes cinematográficos nas portas dos dois cinemas. Ficou, por algum tempo, sentado nas escadarias do Grupo Escolar Castro Alves, numa indecisão conflitante. Estava optando por ver Berenice, quando, subitamente, ouviu seu nome sendo chamado por um amigo, que gritou:
- Ei Johnny! Você quer ir com a gente a um piquenique na Provisão?
Era Nilton Pessoa e Silva, um jovem de dezessete anos, bastante animado, que dirigia um jipe americano sem capota, acrescentando numa alegria contagiante:
- O evento é patrocinado pela turma do Ginásio Estadual. Vai ter dois perus assados, muitos sanduíches e bolos, além de dois engradados de refrigerantes!
- A que horas vocês irão? – Perguntou o garoto, já contagiado com a animação do amigo.
- Daqui a pouco, às nove horas, maios ou menos. Você fica esperando aí, que a gente lhe pega! Certo?
- Está bem, eu fico esperando por vocês!
O garoto ficou pensativo por algum tempo. Afinal um piquenique na Fazenda Provisão era coisa que ninguém perdia por nada; principalmente porque tinha muita comida de graça e haveria outras pessoas da cidade que
freqüentava o seu bar, sua piscina com águas naturais e também uma cascata de águas cristalinas, onde a meninada se divertia a valer. Ponderou bastante entre as quatro opções, ficando inclinado com a última. Nesse momento aparece o seu amigo Tõe Porcino, comandando a turma da Lagoa Dourada, num alvoroço total, trajando as vistosas camisas do Ipiranga, time soteropolitano, o preferido daquela meninada. O negrinho entregou uma delas ao garoto, dizendo:
- Meu camarada, você foi convocado para a nossa seleção! Aqui está sua camisa! Vamos dar uma surra no time da Caixa D’água!
Ué!... Por que esse jogo, logo hoje? Perguntou Johnny, admirado com o repentino desafio.
- Porque não queremos aquela corja no nosso torneio. Deixamos isso bem claro para eles! Então Alcides Zoião nos fez o desafio e nós não somos homens de correr do pau!
- Pau a gente corta no facão! – Completou Mamãe Eu Quero.
- O garoto ficou surpreso com tudo aquilo. Afinal ele nunca teve o menor talento pelo grande esporte bretão. Gostava muito de jogar futebol e, quando alguma pessoa o escolhia para jogar numa partida qualquer, era por falta de alguém mais competente. Gostava muito daquela turma de moleques barulhentos. Eram garotos pobres que estudavam e trabalhavam nas mais diversas atividades que podiam contar. Os meninos estavam agradecidos a Johnny, por ter conseguido para eles o jogo de camisas, através do seu pai, doados pelo Dr. Ademar Nunes Vieira, vereador e candidato a prefeito naquele ano eleitoral.
Johnny não pensou duas vezes. Maravilhado, ele aceitou de imediato aquele inesperado convite. Estava orgulhoso demais com aquela convocação, mais tinha consciência que era por puro agradecimento, que iria jogar em uma das melhores equipes de craques juvenis da cidade. Ficou um pouco preocupado com o seu desempenho, pois a partida era apostada e, certamente, a turma não queria perder suas preciosas revistas de quadrinhos, piões, dinheiro ou outros objetos apostados. Porém, o esperto Porcino sabia que a turma rival era muito agressiva. Depois dele, apesar de ser magro e mais jovem, Johnny the Kid era o único com bastante coragem para enfrentar o encrenqueiro do time opositor, um forte garoto de catorze anos, conhecido como Juvenal Peito de Aço. Antes de pensar em Johnny, Porcino procurou Edgar Pezão e Mipai. Ficou sabendo que os dois tinham ido caçar com a turma da Siqueira Campos, lá pelas bandas do Curral Novo.
Na realidade Johnny temia Juvenal. Em circunstâncias normais, ele jamais entraria em conflito com o famoso rival. Porém no calor da disputa, o menino se transformava, e seu lado agressivo aparecia. Por diversas vezes, em partidas contra a turma rival, Johnny entrou em confronto com o arrojado Juvenal, chegando a se atracarem violentamente. Terminada a partida, com os ânimos mais calmos, o garoto voltava ao normal. Por sua vez, Juvenal não guardava rancores e respeitava a coragem de Johnny.
A turma partiu em direção ao Rio de Contas, que seria o local da contenda. Com suas águas cristalinas e areias magníficas, aquele límpido rio era perfeito para receber uma meninada ávida de uma boa pelada. Nos domingos e feriados, o rio era palco de inúmeras partidas de futebol, que eram assistidas pela população pobre e da pequena classe média, que tomavam banho em suas águas e faziam compras dos produtos vindos das roças, trazidos pelos canoeiros. Chegando ao rio, os garotos escolheram como campo uma área, que naquele momento estava vazia. Quando encontraram com o time opositor, comandado pelo arruaceiro Alcides Zoião, o qual era ladeado pelo desordeiro Bentevi, Johnny notou que, alguns deles eram meninos de rua, vulgarmente denominados de biribanos ou capitães de areia. Chamando Porcino à parte, lhe disse a surdina.
- Ih, rapaz!... Esses sujeitos são perigosos! É bem capaz de eles roubarem as nossas revistas!
- Não se preocupe com isso meu camarada, pois quem vai apitar o jogo é Seu Martins, que é guarda da prefeitura e já anda de olho neles há muito tempo.
O garoto ficou tranqüilo. Afinal o guarda Martins, apesar de ser gentil com a meninada, era respeitado pelos valentões da cidade. Ele chegou um pouco atrasado, saudando a todos com seu simpático sorriso. Conversou um pouco com Johnny e Porcino e depois, chamando os capitães dos times à parte, definiu as regras e a contenda começou.
O jogo foi muito movimentado, com faltas razoáveis e bastante animado. Johnny se esforçou, com capricho, para fazer uma boa figura em campo. A duração daquela partida era uma hora, com períodos de trinta minutos em cada tempo. A única delimitação da área era as traves sem redes, trazidas pelo guarda Martins. Não tinha lateral definida e os jogadores corriam atrás da bola, disputando a sua posse dentro d’água. Johnny e Juvenal tiveram um desempenho, dignos de craques verdadeiros. Apesar da ferrenha disputa, os jogadores dos dois times estavam atuando com grande desenvoltura. A exceção ficou com os dois goleiros, que no decorrer da partida eram vazados, constantemente. Aos vinte e cinco minutos do segundo tempo, o placar estava em nove a nove.
A disputada contenda atraiu a atenção da maioria dos banhistas, próximos da área em que acontecia a inusitada partida de futebol. Começaram a torcer pelos times, devido à garra das duas turmas e do placar muito especial. Os garotos estavam cansados e faltando apenas poucos segundos para a finalização da partida, eles se esforçavam para sair o gol da vitória. De repente, no meio de uma nervosa disputa, a bola sobra e vai cair diretamente no peito do pé de Johnny the Kid que, posicionado no meio do campo, chuta com toda a sua força, vazando o gol adversário.
O delírio foi total. Logo depois, o Guarda Martins apitou o final da partida, no meio daquele alvoroço, que contagiou a inesperada torcida, daquela formidável pelada. Diante do imprevisível resultado e não querendo ficar no prejuízo, Alcides Zoião e Bentevi tentaram protestar, querendo confusão.
Porém, ao notar o olhar reprovador do árbitro, o qual era uma autoridade policial, os dois malandros não tiveram outra opção, a não ser acatar a justa decisão. A seguir, a turma da Caixa D’água foi embora, morrendo de raiva dos garotos pela aposta perdida, jurando vingança.
Johnny the Kid foi bastante aplaudido pelo gol da vitória, sendo carregado pelos seus companheiros, até a sua casa, no final da Rua Siqueira Campos. Esqueceu-se de Berenice, das duas matinais e do piquenique na Fazenda Provisão. Estava vivendo um dia de glória, que ele jamais esqueceria, por toda a sua vida.

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