terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

As Tertúlias da Casa Paroquial.

J. B. Pessoa

Capítulo - 19 do livro " Guris e Gibis".

A quantidade expectadores que assistiram a aquela sessão de matinê era maior do que se previa. Havia semanas que o filme estava em cartaz, sempre com uma faixa dizendo: “atendendo aos pedidos”. O gênero masculino era quase inexistente e a maioria das mulheres eram moças adolescentes, que saiam da sala de projeção com os olhos lacrimejados, pois haviam assistido ao mais famoso dos filmes piegas de todos os tempos. Tratava-se de uma co-produção cubana, mexicana intitulada: “O Direito de Nascer”. Esse dramalhão ficou bastante tempo em cartaz nos cinemas em todo o País. A película agradou tanto, que certo deputado federal entrou com um projeto de lei, pedindo que o Congresso Brasileiro condecorasse os produtores do filme, alegando que aquela “obra de arte” trazia uma mensagem maravilhosa à família brasileira. Entre as pessoas que saiam do cinema estava Berenice e sua amiga Eva Marli, uma moreninha muito bonita, que era sua colega no curso ginasial. Passando pelos garotos, a lourinha olhou rapidamente para Johnny, com um leve sorriso nos lábios. Perto das duas vinha Eduardo com um amigo. Ele falava em voz alta, gesticulando bastante, tecendo elogios ao filme, fazendo questão de dar a sua opinião. Porém, sua verdadeira intenção era aparecer perante as meninas. Ao ver a turma, o garoto ficou muito sério, enquanto era caçoado por Mipai, que não perdia uma oportunidade para depreciar alguém.
- Então seu treiteiro! Chorou muito no filme?
- Ta me estranhando sujeito, sou lá homem de chorar?
- Sei lá! De repente as pessoas mudam. Você passou debaixo de um arco íris? Pois homem que gosta de filme de amor, não passa de um mariquinha!
- Me respeita sujeito, Eu entrei no filme para acompanhar minha prima!
- Cadê ela?
- Saiu na frente com uma amiga. Fiquei de encontrar com as duas na Casa Paroquial.
Mipai virou-se para a turma com desdém, balançando a cabeça negativamente. Enquanto Eduardo era achincalhado pelos amigos, Luis adiantou-se indo ao encontro das meninas, saudando-as delicadamente:
Boa tarde! Perdoe-me a ousadia, mas necessito de uma informação que as meninas podem me dar nesse momento.
De que se trata? – Perguntou Berenice, admirada com a desenvoltura de Luis. Não era comum um garoto abordar uma menina sem nenhum pejo. Geralmente, os meninos eram tímidos. Ficavam rodeando as meninas, trocando olhares amorosos e, só depois de um bom tempo, os mais corajosos aproximavam-se delas; mesmo assim, com articulações ambíguas.
- É a respeito do filme! Os adultos gostaram e muitos jovens também! Eu queria ouvir a opinião das meninas, pois os meninos olham com desprezo!
É um filme agradável! Eu gostei, embora esteja longe de ser o meu estilo predileto! Vale à pena assistir. – Opinou a menina.
- Ainda bem, pois terei que acompanhar minha mãe na sessão da noite. O meu pai tem compromissos e deixou o encargo comigo.
- Peça pra ela levar um lenço muito grande para enxugar as lagrimas, pois o chororô é enorme! – Comentou Eva Marly em tom de zombaria. Aos treze anos, a garota já possuía um apurado senso crítico.
- Ah! Eu achei emocionante! O enredo agrada aos adultos, porque aborda os problemas da vida deles. Eu, pessoalmente, gosto das comédias românticas; entretanto, aprecio um bom drama, com também os filmes épicos, policiais e até mesmo faroestes. – opinou Berenice. Eva Marli notando o desembaraço do garoto e o seu sotaque diferente, perguntou:
- Você não é daqui, não é verdade?
Ah, sim! Sou de Salvador. Meu nome é Luis Augusto. Estou morando aqui em Jequié em virtude da transferência do meu pai para essa cidade. Ele é o novo gerente do Banco da Lavoura de Minas Gerais. Logo após se dirigiu a Berenice e disse seduzido pelo encanto que irradiava da bela menina:
- Eu cheguei a Jequié na noite de Santos Reis! Naquela ocasião, eu tive a oportunidade de assistir o seu desempenho, cantando no coral da igreja.
- Deveras?! – Perguntou Berenice admirada com a afirmação. Depois, observando melhor o garoto, adicionou:
- Claro! Agora eu estou me lembrando! Você estava bem em frente do coral.
Naquele momento, Luís notou que a garotada estava olhando para ele, admirando sua postura extrovertida. Querendo compartilhar aos amigos às duas garotas, chamou toda a turma e fez as apresentações. As meninas foram cordiais, saudando a todos com gentileza. Quando apertou a mão de Porcino, Berenice disse, sorrindo:
- Antonio é gente nossa! Eu o conheço desde pequena!
Eduardo, querendo aproveitar a situação, disse com entusiasmo:
- Eu também lhe conheço há muito tempo, mas só de vista!
- Eu sei! Jequié é uma cidade pequena!
A turma ficou conversando com as meninas por um bom tempo. Eduardo era o mais animado. Berenice notou que Johnny ficou recatado em um canto, na companhia de Edgar. A menina olhou para ele e disse, amavelmente:
E você? Não diz nada?!... Qual é o seu nome?
Johnny enrubesceu naquele momento, pois não esperava que aquela bela garota fosse notar a sua presença.
- Que lindo, ele ficou todo vermelhinho! – Gracejou Eva Marli.
O garoto ficou mais ruborizado ainda, principalmente quando notou os sorrisos mordazes de Mipai, Nêgo e Pé de Pata. Respirou fundo e disse se recompondo:
- Meu nome é João Evangelista, eu sou...
- O famoso Johnny the Kid! O garoto mais “gente boa” da cidade e um grande amigo da turma. - Propagou Tõe Porcino, abraçando o garoto de lado, trazendo-o para junto da menina. Ela olhou profundamente dentro de seus olhos e disse com ternura.
- Eu já lhe vi várias vezes!... Na escola, nas matinês... Como também, na batalha de confetes da segunda feira de carnaval. Ficou quietinho num canto e não brincou com ninguém!
-Não seja arredio, garoto! As meninas gostam de você! – Afirmou Eva Marli e querendo saber mais a respeito de Johnny, perguntou:
- Você também não é daqui!... De onde você veio?
- Somos daqui mesmo, porém morávamos no campo.
- Nossos pais são primos e nós nos reencontramos hoje, depois de muito tempo sem rever um ao outro. – Explicou Luis Augusto. Nesse instante, sem que ninguém pudesse prever, Mamãe Eu Quero pergunta de supetão a Berenice:
- É verdade que você vai ser freira?
- Eu?!... Quem lhe disse isso?
- Foi Tõe Porcino!
-Ah, sim! Isso é coisa da minha bisavó, que está velhinha e me aconselha a ser uma religiosa.
Depois se virando para a turma diz:
- Eu quero casar e ter filhos!
Nesse momento, Porcino dá uma olhada de reprovação para o primo e procurou se desculpar, perante Berenice. Ela aceitou as desculpas e delicadamente explicou que, quando era pequena, achava muito bonito ver as freiras nas igrejas e dizia pra todo mundo, que queria ser uma delas quando crescesse; e que, atualmente, essa idéia não lhe passava pela cabeça.
- É uma idéia de jerico, pois a moça se anula para o resto da vida! – Opinou Eva Marli, que também tinha sido aconselhada, por pessoas de sua família, à vida religiosa.
- É isso mesmo! Cada um deve seguir a sua própria vocação! – Concordou Luis, que acresceu:
- A gente só deve pensar na carreira que iremos optar, quando estivermos cursando o colegial. Eu nem sequer entrei no ginásio! E você Berenice, em que ano está?
- Eu e Eva somos colegas. Estamos cursando a terceira série ginasial no “Ginásio do Padre”.
- Formidável! Então já são ginasianas!
- Sim, fazemos parte do grupo discente desse ginásio. – Afirmou Eva, depois se virando para sua amiga, disse:
- Luis tem razão! Está muito cedo para a gente pensar em que carreira iremos seguir! Muitas águas ainda irão rolar! – A seguir diz para os meninos:
Estamos indo para as tertúlias da Casa Paroquial. Berenice vai dar uma mostra de canto e declames! Vocês não querem vir com a gente?
- Claro que sim! Iremos apreciar a maviosa voz de uma menina linda – Disse Eduardo em tom de galanteio.
- É verdade! Eu próprio já a ouvi cantar no coral juvenil da igreja e fiquei encantado! – Afirmou Luis, corroborando com a opinião do amigo.
Os garotos seguiram as meninas e foram caminhando, alegremente, até o teatro. Eduardo estava bastante contente. Finalmente tinha conseguido fazer amizade com Berenice e, doravante, poderia cumprimentá-la sempre que fosse possível. Porcino, Edgar, Nêgo e Mipai pediram desculpas às meninas e se despediram, alegando terem outro compromisso. Eles foram patinar numa pista de patins, que existia na Praça Ruy Barbosa, ao lado do parque infantil. Géo e Pé de Pata jamais tinham ido a um programa semelhante. Achavam tudo aquilo uma
bobagem, coisas de afeminados. Porém, naquela hora, a idéia lhes parecia agradável, pois estariam na companhia da encantadora menina. Com exceção de Johnny e Luís, apenas Mamãe Eu Quero gostava das tertúlias. O garoto apreciava canto, danças e poesias. Apesar de ter dificuldades com as legendas, ele não perdia um musical hollywoodiano; porém, escondia isso dos amigos, com medo de ser depreciado por eles.
O Teatro da Casa Paroquial estava repleto naquele momento. A maioria dos espectadores era constituída por pessoas, que tinham um nível cultural mediano. Havia no recinto vários pais com seus filhos, alguns políticos, muitas professoras e alunos das principais escolas da cidade, além dos fieis que pertenciam às congregações da Paróquia de Santo Antonio. Moças e rapazes aproveitavam o evento para um discreto flerte, sob os olhares reprovadores das beatas de plantão. Berenice despediu-se da turma e foi para o camarim, enquanto Eva Marli, Johnny e Luís se acomodaram em suas poltronas, atrás de Eduardo, Pé de Pata, Géo e Mamãe eu Quero. Johnny e Luis avistaram suas mães, sentadas bem em frente ao palco, conversando, animadamente, com outras senhoras. Os garotos foram cumprimentá-las, ficando alguns segundos na companhia delas. A seguir ouviram o chamado de Eva Marli que guardava os dois lugares vazios. Os dois se acomodaram nas poltronas e esperaram o inicio da apresentação.
O programa era sempre constituído por artistas amadores, sendo que alguns eram habilidosos instrumentistas e excelentes cantores. No início algumas crianças, dotadas de talentos razoáveis, recitavam poesias tradicionais, seguidos de uma interminável apresentação de acordeons, cujos talentos iam do razoável ao medíocre. A seguir eram apresentados, os valores da terra, com seus cantos líricos e populares, concertos de violinos e pianos, que eram apresentados por artistas amadores de real talento. Esse domingo era um dia especial, pois dos artistas que iria se apresentar, um tinha morado em Jequié. Era um cantor e violonista de Salvador, que se apresentava na Rádio Sociedade da Bahia, com relativo sucesso. Os outros eram pai e filha, da cidade de Ilhéus, que a convite da paróquia veio atuar na cidade. A moça era uma ótima soprano e o pai, além de um bom barítono, era um virtuose no violino.
Antes do começo das apresentações, Berenice voltou para ficar junto dos novos amigos, enquanto não chegasse a sua vez de atuar. Avistou os garotos e foi sentar junto deles. Na falta de uma poltrona vazia, Johnny levantou-se e cedeu o seu lugar para a garota, que recusou gentilmente. Ante a insistência do garoto, ela perguntou:
- E você Johnny, onde irá sentar-se?
- Não se preocupe que darei um jeito!
- Nesse caso sou obrigada a lhe agradecer por tamanha generosidade!
- Não há de que! – Disse o garoto sorrindo.
Luis levantou-se e recebeu a garota amavelmente. Olhou para o primo, piscando o olho em sinal de cumplicidade e sentou-se junto dela, feliz da vida. Johnny foi se acomodar na última fileira, perto da porta de entrada, no último lugar vazio. Eduardo ao perceber que a menina tinha voltado e sentado junto a Luis virou-se para ela e disse:
- Ué! Quer dizer que ficaremos privados de nos deliciar com o encanto da sua voz?
- Vou entrar na parte dos valores da terra! – Disse a menina, secamente, pois detestava elogios gratuitos.
Géo e Pé de Pata, percebendo o aborrecimento da menina, começaram uma gozação sutil, em forma de códigos, só entendida pela turma de moleques da cidade!
- Zé de Bedeu!... Bebeu? – Perguntou Géo.
- Não bebeu e nem convenceu! – Respondeu Pé de Pata, que começou rir discretamente e, ante a olhada enfezada de Eduardo, os dois explodiram em uma sonora gargalhada.
Luís não entendeu nada. Mamãe Eu Quero percebeu que a gozação era feita a Eduardo, pelos seus paparicos a Berenice. Como sentiu o despeito dos dois garotos, entrou no jogo para ajudar o amigo, dizendo:
- Zé de Bedeu não convenceu, porque uma pata escafedeu e um rato esmoreceu!
Luis, chateado com a puerilidade dos amigos, solicitou:
- Façam o favor de parar com essas criancices! Vocês estão me deixando envergonhado.
Os meninos ficaram calados, enquanto Eduardo resmungava:
- Bando de biribanos!
Nesse momento as cortinas se abrem e todo o salão é tomado pelas palmas de uma platéia, que esperavam com impaciência pelo começo do programa. Várias crianças declamaram poemas, dos mais variados poetas, aos talentos da terra. Depois foi a vez dos acordeons, em que, das várias crianças apresentadas, apenas duas tinham talento. As outras tocaram, de maneira desastrosa, uma canção, intitulada: “Saudades de Matão”. Os aplausos tiveram a mesma intensidade, não importando a diferença de valores.
A última parte do programa foi emocionante. O cantor soteropolitano executou dois sucessos, um de Orlando Silva e outro de Francisco Alves, sendo muito aplaudido. O pai e a filha apresentaram duas canções de Vicente Celestino, entre as quais “Ouvindo-te” foi a que mais agradou. Quando chegou a sua vez, Berenice pede licença aos amigos e parte para o palco, fechando aquela mostra de arte, numa soberba apresentação. Ela cantou “Sertão de Jequié”, um sucesso de Dalva de Oliveira, com uma voz sublime, sendo acompanhada ao piano por uma bela e talentosa garota, chamada Celina Lopes. As meninas foram ovacionadas com delírio por toda a platéia, que encantada, pedia o retorno das duas.
Johnny levantou-se de sua poltrona, no final da fila, aplaudindo as meninas com emoção. Comovido com o desempenho de Berenice, duas lagrimas rolaram em sua face juvenil, sentindo que aquele anjo dourado seria o amor de sua vida. Luis Augusto, caído de amores, clamava emocionado:
- Bravo! Bravo!
Havia um bom tempo que Eduardo gostava da menina. Nessa hora de louvação por parte de um público delirante, pensava em uma maneira especial de conquistá-la. Ele sabia que Luís era um forte rival, mas confiava bastante em si mesmo. Quanto a Géo e Pé de Pata podiam sonhar à vontade, que não era páreo para ele. Ninguém sabia dos sentimentos de Johnny por Berenice. A sua timidez lhe impedia ter uma esperança mais consignante e o fato do empobrecimento da
sua família, lhe deixou com um leve sentimento de inferioridade. Além disso, sabia do propósito do primo e torcia por ele.
Berenice e Celina agradeceram aos aplausos e a tertúlia foi encerada com todos os presentes cantando o Hino Nacional. Na saída, as meninas foram bastante assediadas pelas pessoas com abraços e congratulações. Celina despediu-se da parceira e saiu com seus pais. Berenice foi ao encontro de Eva Marli, que a esperava no pátio do teatro, junto da turma. Os garotos acompanharam as meninas pela praça até a escadaria da igreja matriz, onde um cadilac as aguardava. Luís e Eduardo, enamorados de Berenice, teciam-lhe os melhores elogios, que eram apoiados pelo resto da turma. Nesse momento aparece Orlando. Ele fica surpreso e chateado pela intimidade daquela turma com as meninas. No instante da sua chegada, os garotos despediam-se delas com beijinhos no rosto. As meninas entram no automóvel e antes do motorista dar a partida, Luis pergunta a Berenice:
- Quando a verei de novo?
- A qualquer hora! Como já disse para seu amigo: a cidade é pequena!
- Se precisar de qualquer coisa, pode contar com a gente! - Disse Géo com polidez.
- Tenho certeza disso, garoto e agradeço a boa vontade! – Respondeu a menina com simpatia.
Johnny, que no momento estava um pouco distante, notando que Berenice lhe dirigia o olhar, aproximou-se dela e disse baixinho:
- Estou muito feliz em lhe conhecer!
A menina, olhando profundamente dentro de seus olhos, sussurrou:
- Eu também Johnny. Não desapareça!
O cadilac parte dali, deixando os garotos maravilhados com a encantadora menina, jurando nunca mais perder as tertúlias do Teatro da Casa Paroquial.

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