sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Uma matinê inesquecível.

João B. Pessoa

Capítulo - 08 do livro “Guris e Gibis”.

Era uma daquelas tardes ensolaradas e fazia aquele calor convidativo a um gostoso banho nas águas cristalinas do Rio de Contas. Os garotos estavam reunidos sob as sombras de uma frondosa mangueira, situada na área livre do quintal de Pé de Pata, que no momento relia pela terceira vez o último número da sua coleção, “O Cavaleiro Negro”. Edgar, Nêgo e Géo disputavam uma “embaixadinha” com uma bola de meia, improvisada na hora, enquanto Mipai, trepado na árvore à procura de alguma manga madura, caçoava de Johnny, que, recostado ao tronco, assistia tudo aquilo bastante aborrecido. Ele queria ir ao rio e os meninos decidiram ficar por ali mesmo, para bater um “baba” no campo por eles construído, naquele grande terreno que, não havia sido, ainda, dividido pelos muros de seus proprietários. Nesse momento chega Tõe Porcino, que cumprimentando alegremente seus amigos, senta-se em uma das pedras que ficava em baixo da árvore e, aparentando desinteresse por um incidente ocorrido entre eles, diz com naturalidade:
- Turma!... Vocês se lembram dos cascudos que me deram, quando eu disse que assisti em Salvador, a um filme com uma porção de caubóis famosos juntos?
- Sim! – Respondeu Edgar Pezão, sem parar com a sua embaixadinha, que já contava em mais de cem, o numero de chutes, acrescentando:
- E podemos lhe dar mais, se insistir com essa besteira!
Porcino ficou por algum tempo em silêncio, depois disse sorrindo:
- Só digo se for apostado!
- Apostado o que? Gritou Mipai, descendo da mangueira, depois de ter colhido algumas mangas maduras, que distribuiu aos amigos.
No mesmo instante Edgar, Nêgo e Géo pararam com o jogo, interessados com o rumo que aquela conversa estava chegando.
O negrinho coçou o queixo e imitando um malandro carioca dos filmes carnavalescos, disse petulantemente:
- O papai aqui, aposta dez mil réis com cada um, como o filme existe!
- Apostado! – Responderam os garotos em coro.
Alguns meses atrás, Porcino relatou uma maravilhosa viagem, que fez com seu padrinho, o Dr. Humberto Bruni Mariotti a Salvador. Na época contou para a garotada, que assistiu na capital baiana a um extraordinário filme intitulado “Caubóis em Desfile”, protagonizado por vários astros do faroeste B. Logo depois do retorno da suposta viagem, seus amigos ficaram sabendo que, o garoto foi com a sua mãe e irmã colher café numa fazenda do distrito de Itagí, permanecendo nesse trabalho todo o tempo em que afirmou ter estado em Salvador. Quando os garotos tiveram conhecimento da mentira, foram atrás de Porcino, que persistiu no embuste, sofrendo com a impertinência, uma ação punitiva por parte de seus camaradas. Naquele momento o garoto queria ir à forra e se vingar dos enxovalhos sofridos, propondo aquela aposta, na qual ele se redimia e ainda sairia no lucro.
Edgar e Porcino, que trabalhavam nos dias de feira livre, transportando em “carrinhos de mão” as compras dos consumidores, casaram logo as suas apostas. Os outros garotos, que não tinham todo o dinheiro necessário, começaram a avaliar seus brinquedos e revistas em quadrinhos.
- Eu só tenho três mil réis em dinheiro, mas tenho dois “Guri” e quatro “Gibi Mensal” que devem valer uns oito mil réis – disse Géo, que era o mais esperto negociador de histórias em quadrinhos daquela periferia e naquele momento sentiu a oportunidade de desfazer umas velhas e surradas revistas que ninguém queria comprar.
- Eu tenho um almanaque Os Campeões do Oeste, novinho em folha, que acabei de comprar por dez mil reis, na livraria de Dona Lélia. – Disse Mipai na certeza de ganhar a aposta, pois ele já tinha investigado a respeito daquele filme com os rapazes mais velhos da cidade e todos afirmaram negativamente. Nêgo apostou o seu estilingue e seu pião e Pé de Pata Viageira o seu Cavaleiro Negro e o seu revolver de brinquedo. Observando Johnny quieto no seu canto, Porcino perguntou:
- E você meu camarada?... Aposta o que?
Ainda traumatizado pela perda de suas revistas e pelas vaias recebidas na desastrosa aposta do galo capão, o garoto respondeu:
- Nada! “Seguro morreu de velho”! Do meu bolso ninguém tira mais nenhum tostão!
O real, moeda brasileira de origem portuguesa, cujo plural era denominado de réis, desde a era dos descobrimentos, havia saído de circulação, cerca de treze anos atrás e substituído pelo Cruzeiro por determinação da política do Estado Novo. A cédula de um mil réis, impressa pela casa da moeda do Rio de Janeiro, foi trocada pela de um cruzeiro, impressa pelo American Bank Note Company, a qual trazia a efígie do Marquês de Tamandaré. Foram recolhidas todas as cédulas antigas do real, mais conhecida como mil reis e substituídas pelas do cruzeiro. Apesar de terem sido cunhadas as novas moedas do cruzeiro, ainda circulavam as antigas de um mil réis, de quinhentos reis e as de cem reis, conhecida como tostão, as quais foram transformadas em centavos do Cruzeiro. O famoso vintém, moeda de vinte réis, que há muito tempo não dava para comprar nada, acabou virando contrapeso para as balanças de vendas e botequins. A cédula de maior valor, a de mil cruzeiros, que trazia a efígie do descobridor do Brasil, era denominada pela população de um conto de réis. O conto de réis era a arcaica denominação de um milhão de réis, ou seja: em termos modernos, reais. Entretanto, apesar da moeda ser o cruzeiro, o povo ainda usava a designação antiga.
Feitas as apostas coube a Johnny a incumbência de guardar o dinheiro e os objetos apostados, como também a responsabilidade de investigar se o fato era verdadeiro ou não, pois o garoto tinha fama de ser inteligente e estudioso. Apesar do fiasco que cometeu em relação ao galo capão, que deixou sua reputação abalada, a garotada ainda confiava em suas opiniões.
- Como você pode afirmar se o filme existe ou não, Johnny? – Perguntou Mipai, o qual tinha um interesse pessoal no assunto.
- O meu primo Luis Augusto que é de Salvador e está morando agora em Jequié, costumava ir às matinês, aos sábados e domingos, em sua cidade!... Se o filme existe, com certeza ele assistiu! Além disso, Tia Amélia, sua mãe, coleciona a revista “Filmelândia”
- Eu conheço Luis Augusto. Ele é meu amigo. - disse Porcino com orgulho.
- Meu também! – falou Edgar.
Puxa a vida, vocês conhecem Luís? Eu mesmo ainda não encontrei com ele, pois voltou a Salvador para resolver o problema da transferência escolar. Só volta depois do carnaval. A última vez que o vi, eu tinha seis anos e ele ia fazer sete. Ele é mais velho do que eu, oito meses. – Disse Johnny surpreso com a afirmação dos meninos.
- Nossa! Ia à matinê duas vezes por semana? Ele deve ser rico! – Observou Géo, pois para ele e toda a turma da periferia, ter dinheiro para esse luxo, era uma verdadeira riqueza.
- O Pai dele, que é primo irmão do meu pai, é o novo gerente do Banco da Lavoura! – Ressaltou Johnny, com certo orgulho.
Porcino observava toda a conversa com um leve sorriso zombeteiro no rosto e, ainda imitando um malandro carioca, disse com ginga na voz.
- Precisa disso não, meus camaradas!... É só seguir o crioulo aqui!...
A turma se prontificou para seguir o garoto. Edgar, que estava com muita preguiça de ir até ao centro da cidade, sob aquele sol escaldante, advertiu o gibi:
- Olha aqui seu sacana!... Se eu der uma viagem perdida, além de perder tudo, você vai tomar tanto cascudo que vai se arrepender de ter nascido.
- Como eu disse meu camarada!... É só seguir a malandro aqui!
A garotada seguiu pela longa Siqueira Campos que terminava no alto do Maringá. De lá desceria a Rua Maracás e pegaria a Avenida Rio Branco e a Praça Castro Alves, onde estavam situados os dois cinemas da cidade. Enquanto caminhavam, a segurança de Porcino começou a incomodar Pé de Pata, que comentou com os garotos:
- Puxa turma! Será que esse filme existe mesmo? Porcino não é nenhum otário!
- Já estou arrependido de ter feito essa aposta! – Retrucou Géo, que não gostava de perder nada, principalmente suas preciosas revistas.
Bom! Se o filme realmente existir, o que eu duvido, será uma boa noticia. Afinal se passar em Jequié, eu irei assistir e não irei morrer por causa de dez mil reis! – Ponderou Edgar, que já estava torcendo para que o fato fosse verdadeiro.
É devera turma. Já pensou na onda que seria? O Cine Teatro Jequié ficaria entupido de gente! – Exclamou Johnny bastante animado com a possibilidade de ver tantos caubóis juntos.
Mipai e o resto da turma não concordavam com aquilo. A ideia de perder alguma coisa deixava os marotos aborrecidos. Enquanto caminhava com seus camaradas, Johnny, que não tinha feito nenhuma aposta, estava torcendo por Porcino. Afinal, se turma perdesse aquela aposta, ele também se redimia da humilhação sofrida, no caso do galo capado.
A turma seguia apressada, descendo a Rua Maracás, sendo conduzida pelo sorridente negrinho que cantarolava uma marchinha de carnaval. Quando dobraram a esquina com a avenida, deram logo de cara com um grande cartaz pregado em um poste com as letras graúdas: “Sábado em soirée e domingo em matinê, no Cine Bonfim, Cowboys em Desfile”. O cartaz era a cores e tinha uma foto impressa dos principais astros do filme: Roy Rogers, Rex Allen, Gene Autry, entre outros, igualmente famosos e os coadjuvantes mais conhecidos da turma, como o famoso bandido, conhecido da meninada jequiéense como “Correntinha”, interpretado pelo ator Roy Barcorft.
- E aí turma? O papai aqui tinha ou não tinha razão? Sou algum mentiroso?
- Macacos me mordam! – Exclamou Mipai, que gostava de usar expressões típicas das histórias de quadrinhos. Edgar apertou a mão de Porcino dizendo:
- Meu camarada você ganhou a aposta! Agora os cascudos que você recebeu, eu fico lhe devendo!
Edgar ordenou a Johnny que pagasse as apostas. O negrinho mostrava os seus grandes e alvos dentes, numa bela gargalhada, caçoando de Géo, que não conseguia esconder seu desapontamento e procurava um meio de tapear o garoto, para ficar com os três cruzeiros que apostou, porque era o valor de uma entrada de cinema para menores de quinze anos. Porcino foi irredutível e exigiu todo o produto da aposta. Johnny já tinha liberado e ele não podia fazer nada. Foi preciso que Edgar ameaçasse Géo, para que ele não tomasse a pulso do negrinho o seu dinheiro. Porcino e Géo eram da mesma idade, ambos fortes. Uma ameaça de briga pairava entre os dois naquele momento. Mipai ficou maravilhado com aquele cartaz e chamou a turma para ir até o Cine Bonfim para saber de maiores detalhes sobre a programação da matinê daquele domingo. Outra agradável surpresa aguardava os meninos. Para acompanhar o filme, iria passar os dois primeiros episódios de um seriado muito famoso, chamado de “Os Perigos de Nyoka”, estrelado por Clayton Moore e Kay Aldridge.
A porta do Cine Bonfim estava repleta de garotos que vieram confirmar a grande notícia. Dona Palmira, esposa do Senhor Benjamim Alves de Souza, proprietário do cinema, resolveu atender aos pedidos da garotada e conseguiu fazer contato com uma empresa que distribuía o filme. Avisou a meninada que eram quatro filmes e não apenas um, e que todos iriam passar no seu “Pequeno cinema dos grandes filmes”. A alegria da turma foi grande com a nova notícia e os garotos passaram o resto da tarde comentando a respeito de mocinhos & bandidos famosos, sonhando com o próximo final de semana.
Naquele domingo, Johnny acordou bem cedo. A expectativa de ver realizado o seu grande sonho, fez com que o menino dormisse mal na noite anterior. Foi para cama bem cedo naquela noite, esperando o domingo amanhecer depressa. Sua excitação era tão grande, que ele dormiu pouco, acordando à meia noite, sofrendo depois uma terrível insônia. Só conseguiu adormecer, novamente, pela madrugada. Levantou-se às seis horas, bastante cansado, nervoso e com olheiras. Sua mãe notou o fato e, pensando que ele estivesse acometido de alguma doença, quis chamar um médico. O menino descartou logo a idéia, temendo ser obrigado a ficar acamado e perder o grande dia. Tomou um bom banho, se recompôs e a alegria estampou novamente em seu rosto. Após o café, despediu-se dos seus pais e foi com a sua irmã à missa das sete horas na Igreja matriz. Depois do culto, encontrou a sua turma na escadaria da igreja, conversando animadamente sobre cinema. Depois foram encontrar outros garotos na porta do Cine Teatro Jequié para assistirem um festival de desenho do Tom & Jerry.
Ao meio dia, a porta do Cine Bonfim já estava repleta de garotos, que formavam uma fila quilométrica antes da abertura da bilheteria. A garotada, como sempre, negociava suas revistas em quadrinhos, álbuns de figurinhas e toda sorte de produtos de seu interesse. Johnny chegou às treze horas em ponto, com a sua animada turma da Siqueira Campos.
Estavam na porta do cinema, tentando adquirir suas entradas, as turmas dos quatro cantos da cidade. Havia poucas meninas, pois a preferência delas eram os chamados “filmes de amor”. As turmas do centro da cidade, que tinham rivalidade com as do Jequiezinho, entraram, anteriormente, em acordos, deixando suas diferenças a serem resolvidas, posteriormente.
O relógio da matriz bateu o seu sino anunciando às duas horas da tarde. Nesse momento a sirene do cinema tocava o segundo e penúltimo aviso. Edgar estava chateado, sem nenhuma paciência para entrar na fila. Chamando Mipai à parte traçou uma estratégia para burlar aquele esquema. Géo, Nêgo e Pé de Pata faziam aquela algazarra, suscitando comentários de um sujeito arrogante, morador orgulhoso do centro da cidade, conhecido como Pedro Chulé, que desprezava a turma da Siqueira Campos e tinha um profundo despeito por Johnny The Kid. O esperto Porcino, que tinha chegado cedo, comprou várias entradas, vendendo, com bastante lucro às pessoas que estavam desistindo de entrar no cinema. De repente uma grande confusão. Na boca da bilheteria uma briga acontecia. O tumulto por ela provocado dispersou a multidão, que estava próxima, deixando toda a área livre. Edgar e Mipai tinham simulado uma grande briga e o resto da turma aproveitou a dispersão, para comprar seus ingressos naquela bilheteria vazia. Johnny achou a idéia divertida e, apesar da falta de ética, comprou também a sua entrada.
A projeção começou às duas horas e meia da tarde, logo após a sirene ter cantado a última chamada. Os garotos ficaram juntos, ocupando poltronas próximas umas das outras. Edgar e Porcino ficaram perto da turma do cento da cidade. Gostavam deles, mas detestavam Pedro Chulé, a quem consideravam o sujeito mais pernóstico do mundo. Como aquela tarde era especial, eles resolveram deixar de lado a sua antipatia. A sala de projeção estava superlotada, com aquela criançada fazendo o maior barulho. Alguns pais estavam arrependidos de terem trazido seus filhos, pois os poucos ventiladores daquela sala não davam para amenizar aquele calor infernal. Um funcionário do cinema conhecido como Pernambuco, que auxiliava Dona Catarina na portaria, berrava nervosamente, sem nenhuma paciência com tudo aquilo. Enquanto isso, o servente Camilo tentava tirar vários guris dependurados nas janelas fechadas da sala. Uma criança passou mal e saiu, com seus pais, do cinema, sendo seguidos por outros, que reclamavam a irresponsabilidade da gerência, em permitir as vendas de ingressos superiores à capacidade da sala de projeção. De repente, as luzes se apagaram. A gritaria estridente da meninada foi ensurdecedora. Começaram o jornal cinematográfico, os trailers e logo após, o filme. O barulho dos gritos era tão grande que não se conseguia ouvir nada, principalmente as belas canções de Roy Rogers e Gene Autry. Porém, isso pouco incomodava. O que a garotada queria, na verdade, era ver os mocinhos caubóis em ação e aquele filme não decepcionou a ninguém. Quando a película chegou ao fim e começou o seriado, uma nova gritaria parecia arrebentar o cinema. Na projeção do segundo episódio do seriado, a fita se rompeu e as luzes foram acesas sob o protesto da meninada:
- Meu dinheiro! - Gritam em coro os expectadores.
- Benjamim, ladrão de fita! - Protestam outros.
- Pernambuco, “puxa-saco” de patrão! – Grita Tõe Porcino, que nutria uma antipatia pelo porteiro, pois tinha sido expulso por ele de uma matinê, quando fazia algumas molecagens. As luzes são apagadas novamente e o carretel começa a rodar,
projetando a película na tela branca, deixando em êxtase aquela meninada que adorava a arte cinematográfica.
A sessão daquele tarde do Cine Bonfim terminou às dezesseis horas e trinta minutos. Após a tumultuada e inesquecível matinê, a garotada ficou, ainda por um bom tempo, comentando o filme assistido e negociando suas revistas. A turma da Siqueira Campos foi brincar na pista de patins da Praça Ruy Barbosa, enquanto Johnny foi com a turma do centro da cidade, ver um show na casa paroquial com os valores da terra

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