segunda-feira, 23 de setembro de 2019

A viagem.



Capítulo - 02 do livro “Guris e Gibis”.

O trem seguia vagarosamente pela estrada em declive, soltando grossas baforadas de fumaças, deixando atrás de si as veredas, ainda molhadas, pela fina e escassa chuva da tarde. A luz tênue do ocaso penetrava pelos vagões, salpicando seus raios dourados nos rostos adormecidos dos passageiros, que cochilavam serenamente em suas poltronas. O sibilar da locomotiva acordou, subitamente, um garoto que havia adormecido, lendo uma revista em quadrinhos. A maioria dos viajantes despertou naquele momento, quando o condutor anunciou que a próxima parada seria breve. Luis Augusto apanhou a revista que havia caído de suas mãos e voltou para seus pais, que estavam acomodados numa poltrona atrás da sua. Seu pai acendeu o cachimbo e o aroma agradável do fumo inglês penetrou em suas narinas, deixando-o relaxado, no momento em que emitia um profundo suspiro. Sua mãe procurou saber como ele se sentia, compôs o seu cabelo e perguntou se ele queria merendar. O garoto não quis comer nada, alegando estar sem fome. Pegou a sua revista e foi ler a história em quadrinhos, recomeçando na pagina de onde havia adormecido. Não conseguia se concentrar na leitura, pois estava chateado com a mudança da família para o interior. Naquele momento tinha deixado a “civilização” em sua encantadora Salvador, a “Cidade Presépio” e estava viajando para ir morar num lugar, onde provavelmente, segundo a discriminação de sua mãe, só existiam tabaréus. Ela também estava aborrecida por ser forçada a se afastar do convívio das amigas. Doma Amélia Gonçalves da Cunha Viana estava acompanhando seu marido, o Sr. Gustavo Pereira Viana, que fora nomeado gerente do Banco da Lavoura de Minas Gerais, na agência de Jequié, onde a família iria residir, a partir do momento em que ele tomasse posse do seu novo cargo.
O trem apitou novamente quando o cair da tarde havia chegado ao fim. O Sr. Gustavo apagou o seu cachimbo e retirou as cinzas, batendo-o levemente na janela, jogando o resto de fumo para fora do vagão. Lá fora a escuridão começava a tomar conta da paisagem, enquanto a lua nascia esplendorosa por entre as montanhas. Dona Amélia recostou a cabeça no ombro do marido para melhor contemplar aquela maravilhosa cena. Nesse momento o condutor apareceu e anunciou que dentro de dez minutos o trem chegaria à estação.
Era noite fechada quando a locomotiva chegou ao seu destino. O atraso de praxe deixou aborrecidos os passageiros que ainda não estavam acostumados com a situação. A estação estava repleta de pessoas, ávidas de novidades, que naquele momento esperavam parentes ou amigos vindos da capital. Carregadores abordavam os passageiros, a todo o momento, oferecendo seus serviços e era grande o número de vendedores ambulantes, que naquela hora anunciavam os seus produtos a viva voz. Crianças e adolescentes transitavam por toda a estação, oferecendo aos transeuntes, pipocas, rolete de cana, bolinhos de tapioca, queimados de mel, mingaus, cocadas e pirulitos. Um garoto de cor parda, muito esquisito, chamou a atenção de Luis Augusto. Tinha uma barriga
saliente, olhar sonolento e jeito preguiçoso de ser. Bocejava a todo o momento e depois gritava, sem nenhum ânimo, oferecendo o seu produto:
- Olha o mingau baiano!... Quem vai querer! Quem vai querer!
O garoto às vezes bocejava e tentava gritar ao mesmo tempo, produzindo um som totalmente incompreensível. O Sr. Gustavo e Dona Amélia foram conferir suas bagagens, deixando Luis junto a um carrinho de mão, que vendia roletes de cana. Luis comprou uma penca e começou a chupar os roletes, olhando com curiosidade tudo que estava ao seu redor. Seus olhos foram parar no garoto de ar sonolento, que nesse momento se aproximou e o abordou, perguntando:
- Quanto quer pela revista?
- Não está a venda. – Respondeu, secamente, Luis. O garoto, não se conformando com a recusa, olhou bem para a revista e disse:
- Dou dois copos de mingau por ela!... Quer?
Luis, aborrecido com a insistência do garoto, perguntou:
- Quanto custa um copo de mingau?
- Quinhentos reis meio copo e dez tões o copo inteiro.
Luis olhou para o garoto, sem entender se ele era um espertalhão ou um simples débil mental e explicou pacientemente:
- Esta revista é um Almanaque do Cavaleiro Negro, novinho em folha, que custou treze cruzeiros ou, como dizem vocês, treze mil reis! E você me oferece dois míseros cruzeiros? Isto é, supondo que dez tões sejam um cruzeiro, não? Ainda em mingau? Você pensa que sou um necessitado? O que é que há rapaz?
O garoto olhou com desdém para Luis e deu de ombros. Resmungou alguma coisa e foi tratar de vender seu produto a outros passageiros interessados no seu mingau. A seguir Luis foi ao encontro de seus pais, que no momento conversavam com um carregador a procura de informações sobre o paradeiro de uma pessoa, que deveria estar ali para recebê-los. Logo depois apareceu um jovem que se apresentou como funcionário do banco e depois de uma curta conversa, acomodou a família num carro de praça e a conduziu ao hotel, onde iria pernoitar.
O carro saiu da estação ferroviária, que situava próxima ao centro e entrou na artéria principal da cidade, uma comprida avenida denominada de Rio Branco. Logo, após parou em frente de um prédio muito bonito, onde funcionava uma escola primaria por nome de Grupo Escolar Castro Alves, cuja arquitetura encantou Dona Amélia. Ela gostou da fachada da Igreja Matriz, a qual viu de longe e achou o cinema colossal. Procurou saber a respeito de um palacete branco, em estilo neoclássico, e ficou sabendo que era a residência do prefeito da cidade.
Dona Amélia ficou animada e seu entusiasmo foi crescendo na medida em que ia conhecendo a cidade. O rapaz pediu ao motorista que desse uma volta pela igreja, mostrando todo esplendor de uma arquitetura neo gótica. A igreja estava aberta naquele momento, pois nessa noite ia ser rezada uma novena.
Havia muita gente circulando pelas ruas e praças do centro, pois era noite da festa dos Santos Reis. O povo se preparava para ver os inúmeros ternos de reisados, bumba-meu-boi e os cantadores de reis, que saíam todos os anos, do dia 24 de dezembro até o dia de reis em seis de janeiro. Luis Augusto observava tudo aquilo, encantado com a dinâmica da cidade e compartilhava do recente entusiasmo de sua mãe. Verificou que na porta do majestoso cinema estava cheio de pessoas e havia muita gente nas filas das bilheterias. Quando quis ir até a calçada onde estava o cartaz, seu pai o chamou para seguirem ao hotel. Estavam todos cansados da viagem.
Entraram novamente no carro que seguiu em direção à praça principal da cidade, a qual possuía um esplendoroso jardim. A belíssima Praça Ruy Barbosa estava magnificamente iluminada e decorada com motivos natalinos, deixando os habitantes da cidade maravilhados e orgulhosos com o que via. Estacionando o carro na porta do Rex Hotel, o rapaz conduziu a família até a recepção, onde as reservas foram confirmadas. Deixando os hóspedes instalados, ele se despediu de todos e foi embora. Depois da ceia a família foi até a sala de estar do hotel para ouvir um pouco de música. O rádio estava sintonizado numa emissora da capital baiana, que naquele momento transmitia uma linda canção na voz de Dalva de Oliveira, chamada “Sertão de Jequié”. O Sr. Gustavo acendeu o seu cachimbo e comentou com sua família a respeito da canção que homenageava a cidade, onde eles iriam viver.
Luis Augusto pediu permissão aos pais para dar um passeio pelo jardim e ir até a igreja. Sua mãe lhe recomendou para que não demorasse, pois estava muito cansada e queria dormir cedo. O garoto percorreu o jardim e notou que havia vários casais de namorados passeando naquele momento. As pessoas caminhavam num vai-e-vem do jardim à igreja e, às vezes, pela Avenida Rio Branco, voltando em seguida para a praça ou a igreja. Luis foi até ao parque infantil, que em dias de festas funcionava até às vinte horas e foi barrado pelo vigia, que só permitia a entrada de menores de dez anos. Logo depois foi até a pista de patins que estava cheia de garotos patinando e outros brigando por um par deles. As meninas que queriam patinar desistiam logo da idéia e seguiam em direção à igreja. O menino entrou num bar bastante movimentado chamado de “Bar Joly”, que ficava situado em um edifício muito bonito, de arquitetura eclética, chamado de “Edifício Vicente Grillo”. Comprou um sorvete e seguiu saboreando-o em direção a Igreja Matriz, para ver a novena, que naquele momento se encontrava próxima ao seu final. A igreja estava repleta de pessoas de todas as idades, com a maioria composta de moças e rapazes que se flertavam discretamente. O garoto verificou que as pessoas que estavam naquele ambiente eram bastante elegantes. O forte cheiro de incenso penetrou em suas narinas deixando-o enlevado, momentaneamente. De repente o som de um órgão magistralmente executado, entoou um cântico religioso, acompanhado por um coral de meninas, vestidas de branco, deixando o garoto deslumbrado, que procurou se aproximar das encantadoras garotas. Seu olhar parou na solista do coral. Era a menina mais bonita que ele tinha visto em toda a sua vida. Luis
ficou por algum tempo absorto diante de tanta beleza e voz maviosa. Na hora em que o padre executava as preces finais, o menino tentou acercar-se do coral para ver mais de perto tão encantadora visão. Quando pretendia estabelecer alguma comunicação com as meninas do coral, foi esbarrado, desastrosamente, pelas pessoas que procuravam deixar a igreja naquela ocasião. A seguir, depois de instante de perplexidade, notou que as meninas estavam saindo pela porta da sacristia. O garoto deu uma volta pela lateral, mas não conseguiu encontrá-las, pois as meninas entraram em um carro, estacionado em frente à casa paroquial, que as conduziu para suas residências.
Luis Augusto desceu as escadarias da igreja, acompanhando as pessoas que tinham ido rezar a novena. Estava um pouco aborrecido pelo fato de não ter tido a oportunidade de conhecer a bela menina. “Afinal”, pensou ele: “Esta é uma cidade pequena e logo a encontrarei!” Assim pensando, caminhou em direção à Rua Dois de Julho que terminava na Praça Ruy Barbosa, onde ficava o hotel. Antes disso, parou na porta do cinema e, ao verificar a programação da semana, ficou bastante satisfeito. Naquela hora viu um grupo de moças que passou diante do palacete branco conhecido como “Casa de Lomanto” e o resultado disso foram dezenas de assovios marotos, da rapaziada que fazia do local seu ponto de encontro. O garoto achou aquilo muito engraçado e seguiu em direção ao hotel, no momento em que o relógio da matriz badalava as vinte e uma horas e trinta minutos. Estava bastante cansado e, mesmo assim, acompanhou por algum tempo, um grupo de cantadores de reis. Logo depois foi para o hotel, onde estava sendo aguardado pelos seus pais, que o esperavam pacientemente.
Luis Augusto pediu desculpas pelo atraso e após as bênçãos de seus pais entrou no seu quarto para dormir. Foi até o banheiro, escovou os dentes e vestiu o seu pijama, ficando algum tempo na janela de seu quarto, observando a cidade que aos poucos ia ficando vazia com o passar das horas. Notou que as luzes que ressaltavam as linhas arquitetônicas da igreja tinham sido apagadas e, nesse momento a sessão de cinema tinha acabado, pois o numero de pessoas que havia saído do prédio era enorme. Depois disso, fez as suas orações e deitou-se na cama para dormir, pensando na linda menina que cantava no coro juvenil da igreja.


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