segunda-feira, 30 de setembro de 2019

A feira de Jequié

João Batista Pessoa

Capítulo - 03 do livro “Guris e Gibis”.

O dia amanheceu esplendoroso.
Apesar de ter caído uma repentina chuva pela madrugada, o alvorecer foi maravilhoso com um sol radiante, que prometia um dia perfeito. Logo nas primeiras horas da manhã, o movimento das pessoas pelas ruas da cidade, denunciava a força daquela gente, cujo valor era demonstrado pela altivez de seus trabalhadores. Era uma quinta feira e maioria da população se dirigia para a Praça da Bandeira, onde funcionava uma feira livre. Nos três últimos dias da semana, os estabelecimentos comerciais abriam mais cedo, acompanhando o ritmo dos feirantes, que chegavam aos bandos, tanto da caatinga, como da zona da mata, trazendo em seus jumentos ou carros de bois, mercadorias a serem negociadas naquele mercado a céu aberto. Muitos dos produtos que abasteciam a cidade vinham de canoas pelo Rio de Contas, que desciam do alto da caatinga, trazendo frutas, legumes, lenha, carvão e farinha de mandioca, fabricada pelos roceiros que viviam em pequenos sítios às margens do rio.
A feira de Jequié era bastante abastecida, das mais diversas mercadorias, e em suas barracas, o freguês podia encontrar dos artesanatos da região, até produtos industrializados vindos do sul do país. Era um verdadeiro encontro, comercial e social. Políticos passeavam em suas fileiras, saudando os feirantes, tomando e oferecendo aguardente ao povaréu, aproveitando a ocasião para conquistar a simpatia dos possíveis eleitores, e colher os seus votos. Propagandistas ambulantes gritavam, apresentando o seu produto com mesuras teatrais, circundados pelas crianças e adultos, que assistiam o desenrolar das cenas, encantados pelas artimanhas cômicas do vendedor.
Uma grande obra despontava naquela praça. Era a construção do colossal mercado municipal, que ficava situado no centro da praça, ao lado norte dela, e que seria inaugurado, ainda naquele ano. Ao longo da praça, os feirantes vendiam seus produtos espalhados em barracas de madeiras, cobertas de lona. Em uma parte da praça ficavam algumas barracas especiais, com deliciosas comidas regionais, típicas do sertão, onde os matutos faziam suas refeições.
Luis Augusto acordou um pouco tarde naquela manhã. Estava excitado demais ao dormir, demorando muito para pegar no sono e, quando se levantou da cama, já tinha terminado à hora do café matinal. Seu pai deu-lhe algum dinheiro e o aconselhou a dar uma olhada na feira, certo de que o filho iria gostar da cozinha regional. O garoto seguiu contente para a feira, passando pela Avenida Alves Pereira, uma rua de pista dupla, separada por canteiros de flores e árvores frondosas, que intermediava as duas praças. Lá chegando, encantou-se com aquele povo, que na lida diária, fazia dela o seu entretenimento. Ali tinha de tudo: desde um pequeno circo, onde uma bela mulher virava um gorila, que encontrando a porta, sempre aberta, escapava; deixando espantados os espectadores, que saíam correndo com medo do bicho. Havia vendedores de
cordéis, que vendia seus livros, cantando parte da história ao som da viola, como também, pequenos teatros de marionetes, cujos enredos retratavam o modo de vida nordestino, aos ritmos de cocos, xaxados e emboladas. Luis seguiu adiante, parando em frente de uma barraca com uma placa escrita, “Mingau Baiano”. Dentro dela estava aquele garoto de olhos sonolentos, que ele tinha conhecido na estação ferroviária.
- Que tipo de mingau você tem aí? – perguntou Luís disfarçando sua curiosidade.
- Temos de milho, de tapioca e arroz doce. – Respondeu o garoto vendedor.
- Quanto custa o copo?
- Dez tões!
Luis protestou e explicou:
- Um cruzeiro é o que você quer dizer, não é verdade? A moeda brasileira chama-se Cruzeiro há cerca de doze anos! O tempo do real, ou seja, do mil reis, já se foi há muito tempo! Em outras barracas o copo custa cinqüenta centavos, ou seja, quinhentos reis como vocês dizem.
- Pode ser. Mas o copo da gente é maior e o mingau melhor!
- Veremos!... Quero um de milho!
O garoto vendedor colocou um copo cheio de mingau, quentinho, no balcão da barraca, que Luis saboreou com muita vontade.
- Está bom mesmo!... Excelente!
O garoto percebendo a perplexidade de seu freguês, disse com orgulho:
- Foi minha mãe que fez!
Está bom mesmo! Vou aproveitar e provar este cuscuz de tapioca.
- Seu moço, bom mesmo estão essas cocadas.
Luis provou de tudo que tinha naquela rústica barraca de lona. Depois virando para o rapazola, perguntou:
- Como em o seu nome?
- Orlando Silva Santos! – disse o garoto estufando o peito
- É um nome muito bonito. Tem um cantor com esse nome, você conhece? – Indagou Luis, começando a simpatizar-se com o garoto de olhar sonolento.
- Claro que sim!... É o Orlando Silva! Eu sempre escuto esse cantor no alto falante da Voz da Cidade. Todo mundo diz que minha voz é parecida com a dele!
-Você é cantor? – Perguntou Luis, surpreso com aquela afirmação.
- Claro que sim! – Respondeu o garoto com orgulho e olhando Luis com soberba, acrescentou:
- Sempre sou convidado para cantar em casamentos e aniversários! - Que bom! Folgo em saber que você tem talentos especiais! – Disse Luis, percebendo que o vendedor de mingaus, era mais inteligente do que ele imaginava.
- Você tem muitas revistas de artistas? – Perguntou Orlando, já inteiramente à vontade com a nova amizade que acabava de fazer.
- Revistas de artistas? Qual delas você se refere?
- Aquelas que têm aventuras dos artistas de cinema!
- Ah, sim! Histórias em quadrinhos! Claro! Tenho muitas e você?
- Eu também! Tenho a coleção do Cavaleiro Negro, Campeões do Oeste, Fantasma e a do Roy Rogers.
- Bom, eu tenho várias revistas. Porém, só coleciono aquela da editora Ebal, chamada de Edição Maravilhosa, pois publica em quadrinhos os grandes romances da literatura universal.
- Eu sei qual é, mas não aprecio muito! Gosto muito mais das outras, que nem aquela chamada Guri, que tem as aventuras de Tom Mix e de Hopalong Cassidy. – Disse Orlando demonstrado pouco interesse por uma leitura mais consistente.
A conversa entre os dois garotos foi interrompida por alguns fregueses que queriam saborear os petiscos, feitos pela mãe de Orlando. Logo depois, apareceram dois garotos de treze anos, portando os seus carros de mão, os quais ganhavam com eles, um bom dinheiro, transportando as compras dos feirantes às suas residências. Eram garotos pobres, vestidos de maneira rudimentar, que trabalhavam arduamente, e ainda estudavam para completar o curso primário. Um deles era bastante forte e alto para sua idade. Tinha a cor parda, olhos escuros e cabelos encaracolados. Seu nome era Edgar da Silva Nogueira, conhecido por todos pelo apelido era Edgar Pé Grande, devido aos seus pés chatos. O outro era um pretinho bastante simpático, chamado de Antonio Porcino dos Santos, mais conhecido como Tôe Porcino. Era tão forte quanto Edgar Pé Grande, porém, mais baixo. Porcino cumprimentou o vendedor de mingaus, com entusiasmo, fazendo festas. Edgar entregou algumas revistas ao rapazola, para serem negociadas. Depois olhando com desconfiança para Luis, perguntou, discretamente:
- Quem é esse menino rico que tava falando com você?
Orlando também estava curioso. Sabia que aquele garoto era de fora, mas não tinha nenhuma informação dele.
- Não sei, conheci ontem! - depois virando para Luis perguntou:
- Como é seu nome, meu camarada?
- Meu nome é Luis Augusto e sou de Salvador! Estou morando nesta cidade em virtude de meu pai ter sido transferido da capital para o interior! Ele é o novo gerente do Banco da Lavoura de Minas Gerais. Espero fazer boas amizades aqui em Jequié!
Edgar olhou Luis com inveja. Para ele um simples gerente de banco era uma pessoa rica. Luis deveria ser um afortunado, com bastante dinheiro para ir a circos, cinemas e comprar muitas revistas. Ficou, por alguns instantes, observando Luis com mais atenção. Menino branco, bem vestido. Cinto e sapatos de couro da mesma cor, com meias de nylon. Calça de panamá e camisa
de cambraia. Totalmente diferente dos meninos que ele conhecia. Curioso com o jeito do garoto, perguntou:
- Você vai à matinê todos os domingos?
- Sim, sempre que posso, quando não há um programa diferente e, às vezes, minha mãe me põe de castigo!
- Tem hora que eu também fico de castigo, pois minha mãe é fogo! – Disse Porcino simpatizando com Luis.
Edgar, percebendo a maneira educada com que Luis respondia as perguntas, deixou de lado a sua timidez e começando a ver o garoto com outros olhos, disse com amabilidade:
- Nossas mães não perdoam as nossas molecagens!
- De vez em quando a gente cai na palmatória! – Disse com orgulho Tõe Porcino, pois para ele castigo corporal era sinal de uma boa educação familiar.
Molecagens?! – Perguntou Luis, admirado.
Bulir com doidos, roubar goiabas nos quintais vizinhos, quebrar vidros das janelas dos outros, quando estamos jogando bola! – Respondeu Porcino, emitindo uma sonora gargalhada.
- Esses dois são os piores biribanos do Barro Preto! – Pilheriou Orlando, entrando na conversa, após servir outros dos seus fregueses. Rindo bastante, começou a mangar dos amigos:
- Cuidado com os dois!... Os Guardas da Escola de Menores estão atrás deles!
- Me respeita seu sujeito! A gente é pobre, mas não é biribano. A gente tem mãe e uma casa para morar! – Bradou Edgar bastante enfezado com o vendedor de mingaus.
- Calma meu camarada, que o petróleo é nosso! A gente está apenas brincando um com o outro! – Disse Orlando, emitindo um largo sorriso e certa preocupação, pois temia uma reação impetuosa daquele garoto, que era mais forte do que ele.
- É de “eraque”, de “eraque braque! - Articulou Tõe Porcino em tom conciliatório, emitindo o seu simpático sorriso, pois sabia que Edgar não gostava de pilherias e nem simpatizava com Orlando. O garoto olhou severamente para o rapaz e não disse nada, Edgar e Porcino eram dois anos mais jovens do que Orlando. Mesmo assim o rapaz temia os dois, pois eram fortes e bons de briga.
Luis Augusto olhou para os três meninos com bastante curiosidade. Sabia que as diferenças sociais separavam naturalmente as pessoas, mas isso não era uma regra a ser seguida. Afinal, ele já tinha visto pessoas de classe média, como a sua família, serem discriminadas pelos burgueses e esses, por sua vez, bajularem a aristocracia. Olhou para os garotos e viu neles, apenas jovem como ele. Talvez com menos chance na vida, mas dotados de caráter e personalidades fortes. Luis sabia compreender as pessoas. Era um talento nato, reforçado com a educação esmerada que recebia. Desde pequeno, sua mãe chamava a sua atenção para os desfavorecidos na vida e para as injustiças que havia no mundo.
Observou o jeito de ser dos garotos e verificou que os três trabalhavam por necessidades. Apesar do trabalho não ser considerado uma virtude e sim um dever do cidadão; para ele o trabalho infantil era virtuoso. Aqueles garotos trabalhavam desde pequenos, sem saber que os deveres de uma criança eram somente os estudos e a observação religiosa. Luis compreendeu o ressentimento de Edgar. Ele se sentiu ferido nos seus brios, ao ser apresentado a alguém, de maneira desrespeitosa. Chegou para o garoto e tocou de leve em seu ombro, dizendo com amabilidade:
- Não se zangue rapaz! O que seria da vida se a gente não pudesse pilheriar um dos outros. O bom humor faz bem a saúde! - Depois curioso com o termo que ouviu, perguntou:
- Afinal, o que é biribano?
Orlando se apressou em explicar o significado daquela palavra, que havia trazido um pouco de celeuma entre eles:
- Biribano é um “de menor” que não tem pai e nem mãe, que vive na rua e é amigo do “alheio”. Anda sempre em turmas e ataca a gente para roubar e tomar nossas revistas. A gente tem muita raiva deles!
Luis comentou o assunto com tristeza:
- Já sei do que se trata! Os jornais da capital abordam sempre o assunto. Meu pai diz que isso é um problema social e as autoridades governamentais nada fazem a respeito. Em Salvador esses garotos são conhecidos como “capitães de areia”. São, na verdade, crianças pobres, abandonadas, famintas, que devem ser compreendidas por todos.
Os três garotos olharam para Luis durante alguns segundos sem dizer nada. Estavam impressionados com aquele garoto que falava como um adulto. Tõe Porcino gostou do que ouviu e pensando, chegou à conclusão: “esse guri não é nenhum riquinho metido a besta”. Edgar e Orlando, apesar de não concordar com a dedução de Luis, gostaram da defesa que ele fez das pessoas pobres e carentes. Porém, com algumas reservas.
- Que nada rapaz! Pobre que tem vergonha na cara não rouba! Esses biribanos, “ladrão de cebola” não prestam para nada. Só para dar dor de cabeça nas pessoas de bem! – protestou Orlando com veemência, sendo apoiado por Edgar, que disse a seguir:
- O homem direito trabalha! Pobre ou rico. Eu e Tõe carregamos feira e Orlando vende mingaus. Minha mãe e a de Tõe são lavadeiras, a de Orlando é cozinheira...
Nesse momento Antonio Porcino dos Santos, totalmente enlevado com as palavras do amigo, proferiu em tom solene e graça infantil:
- “O trabalho enobrece o homem!”
Luis percebeu que aqueles meninos, apesar de pobres, jamais poderiam compreender os menos afortunados, se estes, porventura, viessem cometer algum delito contra o patrimônio de alguém. Concordando em algumas coisas e discordando de outras, o garoto foi levando à conversa para outro assunto e ficou sabendo que os três estudavam e gostavam de ler histórias em quadrinhos
e contos de fadas. Porcino tinha uma preferência especial, pois adorava literatura de cordel. Tinha lido repetidas vezes, o livreto “Pelejas do Cego Aderaldo com Zé Pretinho” e o famoso “Pavão Misterioso”. Porém a história que mais o sensibilizava era “Os Martírios de Genoveva”, a qual ele lia com lágrimas nos olhos. A preferência de Edgar era as histórias em quadrinhos com Tarzan, O Rei das Selvas e dos mocinhos caubóis, que ele lia nas páginas das revistas, como: O Guri, O Gibí Mensal, Reis do Faroeste e Campeões do Oeste. Heróis que ele assistia as suas aventuras nas matinês aos domingos, nos cinemas da cidade. Depois de conversar bastante com os garotos, Luis se despediu deles, prometendo encontrá-los depois que retornasse de Salvador, onde iria passar o restante das férias com a sua mãe, e tratar dos papeis de transferência escolar para Jequié.
Após aquele instante de conversa Porcino e Edgar se despediram dos amigos e saíram com seus carrinhos de mão à procura dos feirantes para carregar suas compras. Logo depois Luis seguiu em frente, passeando pela feira, olhando tudo com muita curiosidade, escutando, atrás de si, uma voz preguiçosa, gritando:
- Olha o mingau baiano! Quem vai querer quem vai querer!

Nenhum comentário:

Postar um comentário