segunda-feira, 13 de maio de 2019

O Caso do Boi Brabo.

                                                                   J. B. Pessoa


Pelo amor de Deus! Quem sou eu para cometer uma façanha dessas! Eu nem sei como foi que um boato desses apareceu. Meus amigos, eu sempre afirmei para vocês, que eu não sou um homem corajoso. Apenas um sujeito que morreria de vergonha se algum dia vier se acovardar. Como sou orgulhoso, prefiro enfrentar o capeta, a correr dele e ficar conhecido como um cabra mofino. Eu gostaria de ser como o Seu Manequito, que não tem medo de nada, nem de anjo e nem de lobisomem. Aliás, valentia e covardia são versos opostos da mesma moeda, que todo o mundo carrega em seu destino. Eu estou dizendo isso porque, corre por aí um boato, que eu enfrentei um touro furioso e o nocauteei com um murro. Seu Benigno, aqui presente, me disse que ouviu isso no sábado passado, lá no Curral do Conselho. Então sou obrigado a esclarecer aos amigos o assunto e colocar os pingos nos is em questão.
Seu moço, como diz o povo: “Onde há fumaça, há fogo!” Por isso eu vou contar prá vocês como sucedeu esse caso. No ano de 1952, a cidade de Jequié recebeu a imagem da Virgem de Fátima, vinda de Portugal. Naquela época houve muitas missas e procissões na cidade, atraindo pessoas de toda a região para os atos religiosos. Com todo esse movimento de pessoas vindo de fora, a cidade atraiu, também, empresas de entretenimento, como circos e parques itinerantes, entre eles um famoso circo de touradas.
Como vocês devem saber, a tourada praticada no Brasil é diferente das touradas clássicas dos países hispânicos. Aqui ela é cômica com palhaços e toureiros, os quais pegam o touro a unha; na mão grande mesmo, e pelos chifres. Há quem diga que existe muita marmelada nessas touradas, pois os bois são fracos e mansos. O povo se diverte assim mesmo, principalmente com as estripulias dos palhaços. Como?!... Isso não é verdade Seu Manequito? Os touros são realmente brabos? Eu acredito no senhor, pois já assisti muitas touradas. Concordo com o Seu João do Osso aí, quando diz que essa gente gosta mesmo é de desfazer das nossas tradições!
Pois bem: em um sábado à noite daquele memorável ano, a Paróquia de Santo Antonio fez uma procissão em louvor às almas do Santo Purgatório. Era uma procissão diferente, pois apenas homens poderiam participar daquele préstito religioso. Foi uma bela procissão, na qual compareceu quase toda a população masculina da cidade, assim como os seus visitantes. Quem comandou o cortejo foi um padre estrangeiro, o qual misturava os artigos femininos os substantivos masculinos, em seu sotaque engraçado. Eu acompanhava a procissão, na companhia do meu cunhado José Leolino e Silva e do meu irmão Elias Pessoa, o qual morria de rir, com os termos usados pelo referido padre.
O cortejo começou pela meia noite, passando pelas principais ruas e praças do centro da cidade, terminando lá pelas duas horas da madrugada. Foi uma coisa bonita de se ver. Uma quantidade significativa de homens, com suas vozes graves, cantando hinos e benditos, louvando as almas do Santo Purgatório. Eu, meu irmão e o meu cunhado seguimos juntos, próximos ao padre, o qual alertava aos pecadores, do inevitável, da única coisa que todos tinham certeza que viria: mais cedo ou mais tarde, e que as benditas almas que a procissão louvava, nos recebessem com um divino amor.
A procissão encontrava-se perto do seu final, passando pela Praça Ruy Barbosa, quando o alarma aconteceu: Meus amigos, de repente, um enorme boi preto apareceu na frente do cortejo, avançando contra o povo. O padre foi o
primeiro a alertar os fiéis, com o seu inconfundível sotaque: “Cuidado, a boi danada vai atacar!” Seu Moço!... A coisa foi engraçada e, ao mesmo tempo, perigosa demais! No momento em que o boi se arremeteu na multidão, o pessoal que acompanhava a procissão debandou para os quatro cantos da praça, deixando o padre e o andor desprotegidos. Eu nunca vi tanto homem barbudo correndo feito menino. A maioria subiu nas árvores do jardim, enquanto a molecada atiçava o boi, deixando o animal mais raivoso ainda. Eu fiquei junto a Elias e José e resolvemos permanecer no mesmo local, perto da pista de patins, próximos do padre e sacristão, os quais procuraram proteger o andor caído. Nesse ínterim, o boi resolveu investir no pequeno grupo em volta do padre. Seu moço, a coisa que estava engraçada, virou encrenca para nós. Nesse momento, todo o grupo que estava conosco, inclusive José e Elias, deu o fora dali imediatamente; ficando só eu, sozinho, na espera do touro! O que seu Firmino?!... O senhor acha que foi muita coragem minha?!... Ledo engano, meu amigo! Foi medo mesmo. O meu temor foi tanto que as pernas não me obedeceram. Na medida em que o boi se aproximava de mim, o medo aumentava e eu permanecia com as pernas paralisadas. A minha salvação foi que, naquele momento apareceu o bando de moleques, desviando a atenção do boi, o qual resolveu atacar aquela alegre molecada. Respirei forte, ficando aliviado e o temor desapareceu. Olhei para a correria do pessoal fugindo do boi e não achei aquilo nada engraçado; pois, como diz o povo: “Pimenta no cu dos outros é refresco!”
Meus amigos: parece mentira o que eu vou contar pra vocês, mas não é! De repente, o danado do boi parou de correr atrás de toda aquela gente e empacou no meio da praça. Ficou olhando para mim com a sua cara feia e parecia indignado com a minha postura. Na certa estava perguntando a si mesmo: “Como é que um tabaréu desses se atreve a não fugir de mim?!” Pois é!... O safado do boi cismou comigo! Lá estava ele arrastando as patas prá trás, fazendo poeira e olhando para minha cara, bufando de raiva! Senti naquele momento, que o sacana ia me atacar novamente e, subitamente, meus colhões começaram a doer, me deixando com raiva daquele maldito boi, que havia estragado a nossa bela procissão. Embora não tivesse experiência na coisa, eu já tinha assistido a muitas touradas e sabia do jeito certo de pegar um boi pelos chifres. Como eu havia previsto, o bicho partiu na minha direção em posição de combate. Na hora em que o boi arremeteu o seu bote, eu abri os meus braços e, dando alguns passos pra trás, para amortecer o impacto, me joguei entre os seus chifres, agarrando com vontade o seu pescoço. Seu moço, meus companheiros de prosa nessa noite fria e escura de agosto, a coisa foi feia. Enquanto o boi balançava a sua cabeça, eu ia junto com os meus cento e noventa e um centímetros de altura e quase cem quilos de músculos. Segurei o boi e segurei forte, enquanto Elias tentava derrubar o bicho pelo rabo, assim com fazem os vaqueiros nas vaquejadas. Os segundos foram passando e os meus braços se enfraquecendo com os movimentos do boi. Nesse andamento, ele me deu uma arrematada com tanta força, que me fez voar por sobre ele, me esparramando todo pelo chão. Foi aí então, que José Leolino apareceu com um pedaço de pau e bateu bem forte na testa do boi, derrubando o bicho na hora. Foi o meu cunhado e compadre José Leolino e Silva quem nocauteou o famoso touro dos circos de touradas, naquela noite, com um acha de lenha. De qualquer maneira, fomos nós três quem acabou com a festa do coitado, o qual voltou para a arena, com as pernas bambas e muita dor de cabeça, sendo levado por um vaqueiro, que sorria dizendo: “Era uma vez um touro valente!”
Terminando aquele alarido, a procissão completou o seu percurso, finalizando na porta da igreja, com o padre agradecendo a todos os presentes pelo comparecimento e, louvando as almas do Santo Purgatório, afirmou que foram as mesmas que nos defenderam “da boi danada”!
Não presenciei o final da procissão, porque o meu irmão ficou preocupado com o tombo que eu sofri, na hora em que o boi me atirou ao chão. Elias me levou para sua casa, na companhia de José Leolino, onde ele estava hospedado. Eu estava com o corpo inteiro dolorido, pelos arremetes do touro furioso e Elias me convenceu a tomar um remédio catingueiro, o qual era um chá bem forte, especialidade de Augusta, sua mulher. Por isso mesmo, não podemos confirmar, o que muita gente comentou depois, sobre os agradecimentos do padre estrangeiro. Entre tantas palavras erradas, as quais dão um sentido diferente para quem está ouvindo, ele finalizou o seu discurso, dizendo em alto e bom som: “Quero agradecer a maior prefeito da baia, Lomanto Júmento! Eu monto satisfeito!” Não ri não, pessoal. A coisa foi séria.

Décimo capítulo do livro não publicado: “As Aventuras de um Catingueiro”.


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