Nunca me senti hippie. Era antes um anarquista descrente do estado. Ou talvez, estivesse dividido, buscando algo mais gratificante para minha juventude. A minha militância política contra a ditadura, não foi muito expressiva por ser contra métodos terroristas e violentos. Pichei muitos muros em Jequié e Salvador denunciando o golpe e as torturas.  Lembro quando fui levado para um aparelho de reunião do PCB, viajei em um Toyota, numa trilha pelos matos, umas quatro horas com os olhos vendados para não ver o caminho. Chegando ao aparelho me botaram pra catar feijão e ajudar na preparação do rango. Fiquei ali muito tempo mexendo e tomando conta da grande panela de feijão, torcendo para chegar logo a hora do rancho. Andava mal alimentado e faminto. Um “camarada” chegou avisando que o comandante queria me ver. O comandante era um bancário conhecido de Ipiau que me recebeu sorrindo me nomeando pelo meu apelido, Pinduca. Entregou-me um velho fuzil e ordenou que eu fosse vigiar de cima de um morro perto, até o começo da noite quando seria substituído. Disse que estava com fome. Ele deu uma risada e me chamou de pequeno burguês, que era por causa de camaradas frouxos como eu que o país tava na merda, comeria na volta da tarefa. Esqueceram de mim, fiquei plantado sob uma jaqueira, sendo comido pelas muriçocas até as nove da noite, morrendo de fome e com medo que aparecesse uma onça ou uma alma penada, quando chegaram dois camaradas bêbados com uma lanterna de mão.

-Tu ainda taí, maluco? Colé camarada?
-Camarada uma porra. Vocês me deixam até agora aqui nessa merda, com fome, muriçoca pá porra. Só não desertei porque não sei onde estou nesse cu de mundo.
-Tu não vai achar é nada. Comeram tudo.
-Porra é mesmo?  Sacanagem!… O feijão que eu catei com tanto patriotismo. Filhos da puta. Um maluco deu uma gargalhada e exortou o meu patriotismo.
-Patriotismo uma porra. Tô é com fome. Agora eu quero é que os americanos, os russos, os japoneses os americanos invadam esta porra que eu não quero nem saber. Os dois concordaram dizendo nunca mais queriam participar de nenhuma reunião clandestina, que era esparro.
-Não quero mais saber de comunismo nem de capitalismo. Esses vagabundos só querem a ditadura e pau nos prejudicados.
O outro maluco disse que só estava ali porque disseram que era uma feijoada boca livre e que ia ter muita cerveja.
-Até agora só vi papo careta e o feijão tava queimado. Teve um lá que mastigou uma pedrinha e quebrou um dente.
-Foi mesmo? E eu catei tão bem…
-Ele aproveitou para atacar a política agrícola do governo e disse que ta com vontade de te matar.
Cheguei à cozinha roncando de fome destampei o panelão, não havia nada. Comeram tudo. Esqueceram de mim. Dia seguinte, depois de um café ralo, deparei com um alto dignitário do partido defecando numas moitas junto ao galpão. O aroma de merda em torno do aparelho era nauseabundo. Pelo terceiro dia sem tomar banho, fedíamos mais do que o ditador Mao Tsé Tung, que, todos sabem, nunca tomou banho. Fiz parte da reunião onde estavam representantes de várias partes do Brasil e outros países da América Latina numa tentativa de congregar alguns partidos de esquerda, que nesse momento estavam na clandestinidade e deveriam definir uma linha de ação. Fiz uns desenhos que ia passando para os camaradas em volta. Era Fidel Castro com imensa barriga e a legenda, ¨esquerda grávida¨. Olhavam-me desconfiado. Um suado representante da célula de Vitória da Conquista no calor do seu discurso, num supremo esforço de retórica, soltou um sonoro peido. Foi um silêncio mortal, mas o flatulento orador continuou falando indiferente ao fragor do fato. Tentei segurar, mas não contive a gargalhada. Fui taxado de alienado, pequeno burguês, discriminado no galpão e expulso do partido. Ainda bem. A minha ideologia continua sendo o respeito à vida, senso de justiça, trabalho, preguiça e a alegria. Agora estava livre do pensamento tirano. Mas valeu a pichação que fiz nos muros de Jequié esculhambando a ditadura militar. Se fosse uma ditadura de esquerda, eu faria o mesmo.
Agora podia gostar sem culpa do que realmente gostava. Livre para experimentar a vida sem filosofias radicais, voltado para o meu mundo particular da imaginação, livre para experimentar a arte pela arte, num saque repentino de que a chamada arte socializante era apenas propaganda, a obra engajada apenas ilustração.
Mergulhei no dadaísmo e total liberdade da pop art. Com essa virada de percepção mudaram as minhas convicções estéticas. As experiências psicodélicas descortinavam um universo de novas e luminosas imagens. Havia encontrado uma saída e um caminho para meu próprio mundo e me sentia muito bem. Só não sabia como sobreviver com os sérios problemas de cada dia. A província de Salvador não era hospitaleira para um cabeludo sem emprego nem moradia certa. Discriminado e mal visto pelo preconceito de todos os extratos sociais. – É como diz o grande repentista Bule Bule: A Bahia não é mãe. É madrasta. Certa manhã enquanto tomava um pingado em um bar, um senhor afrodescendente, muito irritado me interpelou aos gritos:
-Cabeludo vagabundo você devia estar na cadeia. Tome vergonha ripe. Deve ser maconheiro.
O que diria hoje, aquele senhor vendo os dreads looks dos seus netos rastafaris, que servem de modelos para a juventude gringa, principalmente a alemã? O preconceituoso sempre justifica o aleijão da ignorância. – lugere. (Revista Bahia em Foco)

 Guitarra de Hendrix – Aço Inox sobre madeira – foto Cravo neto
*Antonio Luiz Silva Martins é escritor, ator, compositor, Artista multimídia (Cinema, artes plásticas, música, literatura) Anarquista biocratico não especista Este texto foi é um capítulo do livro “Mágicas Mentiras” – Salvador, Vento Leste, 2009 328 p.