domingo, 25 de novembro de 2018

A Festa

                             J. B. Pessoa

Uma das vantagens de Jequié é a sua localização. Centrada numa zona intermediaria entre a Mata e a Caatinga, e de uma espécie de vegetação, semelhante ao Cerrado, denominada de Mata Cipó, a cidade sofre e exerce influências econômicas e culturais nas demais cidades de sua vizinhança. Situada no Planalto Baiano, na depressão relativa do vale do Rio das Contas tem suas terras mais baixas do que as cidades de sua vizinhança. As exceções ficam por conta das ribeirinhas, que seguem a corrente do rio, sendo por isso o seu clima mais quente que as demais.
Todas as cidades têm os seus próprios feriados e dias santos. É comum as cidades comemorar suas datas importantes com muita festança. Em um raio, que não ultrapassa os cem quilômetros, ficam próximas de Jequié, a sudeste do município, as progressistas cidades de Jitaúna, Itají e Ipiaú. Mais além, ultrapassando os cem quilômetros, Itabuna e Ilhéus. Ao Norte estão Jaquaquara, Itiruçu e Maracás. Ao sul, um pouco mais distante, seguindo a rodovia BR-116, estão situadas as cidades de Poções, Planalto e Vitoria da Conquista.
Cientes dessas informações, a rapaziada jequieense sabe do dia e hora dos acontecimentos políticos, sociais e religiosos de seus vizinhos e como tirar proveito de seus festejos. Está sempre acontecendo alguma festa em algum lugar, como um caruru, ou aniversário de alguém influente. Nessas ocasiões, a pandegada não perde a oportunidade e partem para essas cidades que, as mais próximas, ficam em uma distância, mais ou menos, como do centro de uma capital para seus bairros periféricos.
Em uma bela noite de verão, em que a região era presenteada com o clarão esplendoroso de uma lua prateada, a qual não tinha sido ainda, maculada pelas hordas do progresso, um grupo de jovens estudantes pretendia ir a uma dessas cidades. Reunidos na calçada do Cine Teatro Jequié, esses moços planejavam ir a uma festança numa pequena cidade da região, de altitude muito elevada. Era uma comemoração tradicional, com novenas e quermesses, que finalizaria com um “grito de carnaval”, em seu clube social. Essa turma era liderada por um jovem de alegria contagiante chamado Raimundo Meira. Ele era o único que portava um convite. Com esse ingresso, que estava em nome de seu pai, pretendia penetrar no baile, levando seus três amigos.
- Como poderemos passar por irmãos, se somos tão diferentes um do outro! – Disse um jovem alto, chamado Lauro.
- Você é louro, eu sou moreno, Raimundo é branquelo! Isso sem contar que o nosso amigo Eugênio é mulato – observou José Roberto, um jovem extrovertido, que passou três meses no Rio de Janeiro e voltou com o sotaque característico da Cidade Maravilhosa, ganhando com isso o apedido de Zé Carioca.
- De noite todos os gatos são pardos e o porteiro do clube é meu camarada! – Afirmou Raimundo, que era o mais animado da turma.
Decididos a participarem daquela aventura, os jovens entraram em um jipe sem capota, trajando roupas típicas de verão e seguiram pela rodovia BR-116, cantando as novas músicas, recém-lançadas no rádio, que faria sucesso no
próximo carnaval. À medida que o carro subia a estrada, saindo do vale, a temperatura ia caindo. Quando chegaram ao planalto, a lua sumiu e começou a cair um sereno típico da região. Embora fosse verão, a temperatura caiu e os rapazes começaram a sentir frio. O carro seguiu pela estrada adentro, atravessando o município de Jaguarquara, indo em direção a uma cidadezinha pitoresca, que ficava numa altitude superior às demais. Lá chegando, os jovens foram diretos para a praça principal da cidade, onde ficava o clube, parando no primeiro bar que encontraram.
Com as roupas enxovalhadas, os rapazes entraram no bar, morrendo de frio! Zé Carioca chateado com tudo aquilo, resolveu esnobar a cidade, dizendo com desdém:
- Nessa porra cai neve?!
- Dizem os mais antigos, que na madrugada de um inverno, há muito tempo, em uma serra perto aqui, a temperatura chegou ao zero grau e caíram flocos de neve, formando uma finíssima camada, que derreteu logo ao amanhecer! – Disse Raimundo, o qual conhecia muito bem aquela cidade.
- Se minha mãe souber que estive num lugar desses, me bate quando eu chegar em casa! - Disse com desdém Zé Carioca, o qual nasceu e foi criado em um medíocre povoado na Zona da Mata que, nem de longe, podia ser comparado àquela pitoresca cidadezinha.
- Cala a boca seu sacana! Quer morrer?!...O pessoal daqui é gente boa, mas é muito cismado. Se não for com a cara de alguém, é encrenca certa! – Observou Raimundo, aborrecido com a ofensa do amigo.
- Eu soube que um cara de Salvador foi dar um de gostoso aqui, apanhou que nem Judas em sábado de aleluia! – Disse Eugênio sorrindo, que também conhecia a fama da cidade.
Os quatros rapazes se acomodaram em uma mesa situada perto da porta, que dava uma visão privilegiada da praça. Naquele momento, o lugar estava repleto de pessoas. A maioria delas era composta por jovens adolescentes, que flertavam puerilmente naquele ambiente. Às 22 horas a neblina cessou, e um vento frio começou a soprar, fazendo os rapazes, tremer, e ranger os dentes. Lauro chamou o garçom e pediu quatro doses de uísque seco e todos tomaram de um trago só. A turma permaneceu naquele bar, proseando e consumindo o malte nacional por um bom tempo. De repente Eugênio, que estava absorto, olhando para o povo na praça, em trajes de verão, disse admirado:
- O pessoal daqui parece que não sente frio!
- Eles sentem sim! – Comentou sorrindo Zé Carioca, que acrescentou às gargalhadas.
– É que eles são tão tabaréus que não percebem!
Lauro e Eugênio riram a valer, diante do olhar aborrecido do garçom. Bastante chateado com a imprudência de seus amigos, Raimundo disse irritado:
- Bando de otários! Aqui, quem quiser se dar bem, tem que fazer primeiro, amizade com a turma da cidade! A começar pelos garçons, donos de bares, padres, coroinhas de igrejas, veados!... A puta que pariu vocês...
- Não se aborreça meu camarada, é apenas uma brincadeira! – observou Lauro, um pouco preocupado com o mau humor do amigo.
- Deixa Raimundo pra lá rapaz, que ele está bêbado! O negócio é ir atrás das meninas! – Gracejou Zé Carioca que, olhando para a praça, acrescentou a sorrir:
- Rapaz!...Isso aqui é o ouro da Babilônia!
Os rapazes saíram do bar e foram dar um passeio pela praça. Raimundo estava arrependido por ter convidado Zé Carioca. Naquele momento, o rapaz estava embriagado e assediava as meninas com aquele sotaque forçado de carioca, que nasceu em qualquer lugar do mundo, menos no Rio de Janeiro. Moreno, de olhos verdes, não era bonito. Fazia algum sucesso com as garotas inexperientes, devido à sua conduta extrovertida. Lauro, apesar de bonitão, era muito tímido e bastante brando com as meninas, Eugênio era um mulato claro, muito simpático, agradava sempre as meninas. Raimundo era o intelectual da turma. Branco, de cabelos negros, elegante e educado; embora não fosse rico, descendia de uma aristocracia importante na Bahia. Fazia mais o tipo cavalheiro e, por isso mesmo, estava preocupado com a embriaguez do camarada. De repente no meio da multidão surge um grande amigo da turma, Era Carlão, um moreno alto de cabelos compridos que, sentido muito frio estava envolto em um cobertor de dormir. Estava com uma garrafa de conhaque e de mãos dadas a uma garota muito bonita, que o acompanhava.
- Puxa turma!... Vocês por aqui?!... Que barato! – Exclamou Carlão com uma alegria esfuziante.
- A gente veio para o grito de carnaval!...E o pessoal daqui é animado mesmo! – Disse Raimundo, alegre com a repentina aparição do amigo.
- Cara!...Que cobertor e esse?!... Tu tá parecendo índio de filme americano! – Observou Zé Carioca, caçoando do amigo.
Carlão, rindo bastante da sua situação, retrucou:
- Meu camarada!... Cheguei aqui às duas horas da tarde com um sol gostoso. Vim ver Carminha e conhecer os pais dela! Acostumado com o calor de Jequié, vesti apenas esta camiseta. O frio chegou e não tinha nenhum blusão que desse em mim, Dona Alice, mãe de Carminha, esta linda menina, minha namorada, me deu esse cobertor de lã! Daqui a pouco, quando o baile começar, deixo o cobertor em casa e entro no quentinho do clube abraçado à minha mina.
Rapaz!...Tá um frio de lascar e o pessoal daqui não estar nem aí! – disse Eugênio admirado com tudo aquilo.
- A turma daqui já esta acostumada! Vocês precisam nos visitar no São João! - Falou a moça rindo dos rapazes.
- Só se eu for maluco! Passar frio na roça é coisa de otário! Se fosse uma cidade que nem São Paulo, tudo bem! Mas Aqui?! - Disse em tom de zombaria Zé Carioca, que continuava exagerando em suas piadas.
Fulo de raiva com a falta de educação e imprudência do companheiro, Raimundo retrucou:
- Desculpe o nosso amigo, mocinha! Esse capiau aqui tira uma de carioca, mas é mateiro de um lugar onde o Judas perdeu as botas e está bêbado de dá dó!
A moça sorriu compreensiva e não se importou com aquilo. Retirou-se com o seu namorado, que prometeu encontrar a turma mais tarde. Os rapazes seguiram em direção do clube, que naquele momento estava repleto de gente. Estava terminando uma comemoração política e não havia nenhum porteiro no momento. O salão estava decorado com motivos de carnaval. Naquela hora uma meninada, menor de idade, era a maioria e fazia um alarido que irritava bastante o Zé Carioca. A festa estava por começar e só precisava da autorização do juiz de menores. A banda “Oliveira e seu Conjunto” já se encontravam no palco e os músicos faziam os últimos ajustes em seus instrumentos. Um senhor chegou ao microfone e pediu a imediata retirada dos menores do recinto. A
turma estava encantada com o número de garotas bonitas naquele ambiente e Zé Carioca esperava ansioso pelo inicio do baile.
Como o bando de moleques se recusava a sair, o juiz ordenou aos adultos presentes, que retirasse à força os menores de quinze anos. A molecada resistiu de todas as maneiras, perturbando a todos com a sua implicância. Uns diziam que eram pequenos, mas eram velhos e outros ficavam na ponta dos pés tentando aparentar altura. Todos foram sendo postos para fora pelos adultos, com as suas orelhas sendo puxadas e tomando cascudos. Zé Carioca foi o que mais atuou nessa empreitada, diante da reprovação de seus amigos. De repente ele, bastante bêbado, agarra um individuo de paletó e gravata, bigodinho fino e cabelos penteados à brilhantina, bastante pequeno e tenta jogá-lo fora do salão. O baixinho vira para ele, bastante indignado e grita a seguir:
- Me respeite rapaz, que eu sou homem!
Zé Carioca olhou incrédulo para o baixinho e disse:
- Quem já viu homem desse tamanho, cabra? – Dito isso, pegou o baixinho e deu uns cascudos. Segurando com uma mão a gola atrás do paletó e com a outra o cinto atrás das calças, levou o baixinho até a porta do clube, atirando o sujeito à rua, com um pontapé na bunda.
Nesse momento, Carlão correu assustado e falou rápido para a turma, ainda atônita com o acontecido:
- Caiam fora daqui e leve esse porra com vocês! Aquele baixinho é, simplesmente, o presidente deste clube e o homem mais rico da região! E não é só isso! São seus irmãos o prefeito da cidade, o juiz, o promotor, dois médicos e o delegado de policia! - Dito isso, caiu fora dali para não se comprometer. Raimundo e a turma saíram correndo do clube, levando o Zé Carioca que, bêbado, não entendia nada. A sorte deles foi que naquele momento, eles encontraram um cidadão, que estava levando um carregamento de feijão para Jequié. Jogaram o sujeito em cima do caminhão e pediram que o entregasse em casa. O cidadão era amigo do pai de Zé Carioca e prometeu deixar o bêbado em sua casa. Zé Carioca, deitado no meio dos sacos de feijão, foi roncando a viagem toda. A turma seguiu para o clube, que naquele instante começava a folia. O baixinho, rodeado de policiais, procurava o atrevido que o havia injuriado. Raimundo virou para turma e perguntou, fingindo importância:
- Por acaso vocês conhecem o sujeito em questão?
- Nunca o vi mais gordo! – Respondeu Lauro.
- Nem eu! - Completou Eugênio.
Um bêbado olhou para a turma e disse com a voz enrolada em alto e bom som, sendo ouvido por todos os presentes:
- Eu conheço!... O sacana é de Vitória da Conquista!

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