segunda-feira, 19 de novembro de 2018

A Barraca da Elite.

                         J. B. Pessoa

Certo cidadão, aborrecido com os desmandos que imperavam na mais famosa festa de largo jequieense, resolveu montar na quermesse de Santo Antonio, uma barraca bastante sofisticada que, enquanto durassem as novenas, seria o ponto de encontro das “pessoas de bem”. Para isso tratou de escolher o que tinha de melhor para compor o seu projeto. O vigário da matriz, fascinado com a idéia, reservou-lhe a melhor e maior área da praça. A decoração e o fornecimento das iguarias ficaram a cargo das senhoras acostumadas com o fino trato das elites. Os vinhos, todos importados, foram oferecidos, gratuitamente, por um importante político da região, que também patrocinou a vinda de uma famosa banda da capital. Por tocar músicas tradicionais, essa banda andava bastante depreciada na capital baiana, devido a um novo tipo de música, de gosto duvidoso, que estava na moda entre a juventude, tocando em todas as rádios e clubes, afugentando dos salões as pessoas que deploravam aquela novidade. Tudo foi feito conforme a determinação do seu organizador. Desde a sua inauguração, essa excepcional barraca, que era um barracão de luxo, tornou-se um sucesso total, atraindo a aristocracia regional às suas dependências.
Certa noite, no meio do estrondar dos foguetes e rojões, da beleza dos fogos de artifícios, um jovem cidadão, fulo de raiva com aquela medíocre música vinda de Salvador, tratou de procurar abrigo e tentou de entrar na famosa e elegante barraca, onde as pessoas podiam ouvir canções tradicionais das festas juninas. O jovem foi barrado na entrada por um porteiro que era um gigante com mais de dois metros de altura, pesando uns tantos quilos de músculos. O jovem protestou em vão e o enorme “leão de chácara” não cedeu. Emprestado da Guarda Municipal da cidade de Feira de Santana, tinha ordens especificas: Pobre não entra.
O jovem cidadão não era pobre, porém estava usando um surrado uniforme escolar de um colégio público, pois estudava no turno da noite, o último ano do curso de contabilidade. Bastante aborrecido com o vil preconceito, o rapaz retirou-se daquele recinto e foi beber numa barraca, onde algumas pessoas, que gostavam de candomblé, entoavam seus belos cânticos. O moço foi aos pouco se enturmando e ficou bastante animado, pois se tratava do mais autentico folclore baiano. Gostava daquelas danças e cantigas. Começou a cantar e a tomar doses de uma bebida diferente, trazida por aquele bizarro grupo, o qual parecia ser de outra cidade. Depois de algum tempo, o alegre bando foi embora e o jovem, se sentindo feliz, demorou mais um pouco naquela animada barraca. Nesse momento, entraram três frades com aquele contentamento natural das crianças. Eram dois brancos e um negro, trajando seus respectivos hábitos, falando das coisas do Céu e da Terra. O jovem pensou que fossem religiosos comuns e começou a conversar com eles.
- Boa noite irmãos! Estão gostando da festa?
- Oh sim, maravilhosa! Cheia de encantamento! Só no Céu se vê uma festa assim! – Respondeu um dos frades, com aquele sotaque característico dos religiosos europeus.
- Tu a mereces Antônio! Tu és um dos santos mais queridos da cristandade, por esse povo de Deus! – Observou o outro, com uma humildade cativante.
O jovem ficou olhando para os dois frades, sem entender direito o que estava acontecendo, pois a aquela altura já se encontrava um tanto embriagado. Olhou para o outro, o negro que nada dizia, concordando com tudo com um olhar humilde. O jovem, surpreso como desenrolar da situação, disse a seguir.
- O senhor se chama Antonio? Meu nome é Raimundo! Sou...
- Raimundo?!...Teu nome é muito bonito meu filho! Sou muito amigo de São Raimundo, que é um santo muito querido do Cristo! Este aqui e São Francisco e este, que fala pouco, é São Benedito! Estamos visitando esta cidade maravilhosa, que todo o ano dá uma festa em minha homenagem!
O jovem, um tanto pasmado, apertou a mão dos três, sentindo uma sensação divina naquela inusitada situação. De repente, o frade de nome Francisco exclamou com uma pueril euforia.
- Oh! Vede irmãos! Que barraca bonita! Vamos visitá-la?
- Oh! Sim, sim! Quantas pessoas distintas!
- Vamo-nos então! Raimundo, que é um jovem cativante, na certa nos apresentará aquela gente temente a Deus!
O jovem olhou bem para os três frades, notando que seus hábitos estavam muito enxovalhados, pois se tratava de santos que defendiam a pobreza. Compreendia também, que aquela barraca, com certeza, não era de gente temente a Deus. Tentou em vão, fazê-los desistirem da idéia, argumentando que aquele povo era um tanto paradoxal no que se referia à religião.
Os três frades andaram em direção à barraca, conversando animadamente, abraçados ao jovem, o qual, naquele momento, sentia algo de celestial que ele não conseguia definir. Chegando à portaria, eles tentaram entrar na barraca, sendo logo barrados pelo guarda feirense. O jovem cidadão fez as apresentações, explicando quem eram aqueles divinos frades. Mas tudo foi em inútil. Nesse momento o frade de nome Francisco protestou com veemência:
- Afinal, esta festa não é em homenagem ao nosso amigo aqui presente, Santo Antonio, padroeiro desta cidade?
O porteiro balançou negativamente a cabeça e, aparentando impaciência, disse com desprezo:
- Cala a boca Chico e se manda daqui! Este evento é privado e não é pra teu bico!
- O que é isso rapaz?! Olha o respeito! Estás cometendo uma heresia! – bradou o frade Antonio.
O porteiro olhou para o religioso e disse com arrogância:
- E daí Tõe!... Eu não sou católico! - Erguendo o peito, cheio de orgulho, disse com petulância:
– Eu sou evangélico!
Os dois frades começaram a discorrer sobre o papel da Igreja no mundo, do ecumenismo que ela defendia, quando, irritado, o porteiro agrediu os dois pobres
frades, que foram jogados ao chão. Nesse momento o jovem foi em socorro dos frades caídos e disse para o de nome Benedito:
- E aí Frade!... Diga alguma coisa!
São Benedito, espantado com tudo aquilo, protestou:
- Eu?!... Você está maluco?!... Esses dois que são brancos apanharam, imagine eu que sou preto! – Dito isso tratou de sair rápido dali, levando seus desventurados amigos. Nesse momento, o jovem cidadão estufou seu magro peito e fez um eloqüente e irritado discurso sobre os direitos humanos. De repente, algo pesado abateu sobre sua cabeça. Desfalecendo, só acordou no dia seguinte, estirado sobre as escadarias da igreja, com o sol já alto e um cachorro lambendo o seu rosto. (Do livro não publicado, “Velhos Tempos Jequieenses”)

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